Decisões recentes do Supremo Tribunal Federal mostram que a
corte tem se preocupado com outros elementos além da Lei Maior do país. O
guardião da Constituição também tem superprotegido as portas do erário quando
as demandas judiciais opõem fisco e contribuintes e tem se deixado afetar pela
exposição pública ao ter seus julgamentos transmitidos ao vivo pela televisão e
comentados nas notícias dos jornais. São provas disso o número de vitórias da
Fazenda Nacional nas disputas tributárias e os longos e redundantes votos dos
ministros mesmo em decisões unânimes ou em que a frase “acompanho o relator”
economizaria horas — dias, em alguns casos — de julgamento.
A opinião é de quem advoga há 50 anos no Supremo e viu sua
composição — e sua jurisprudência — mudar incontáveis vezes ao longo do tempo.
“Mas nunca antes como agora”, diz o tributarista e constitucionalista Ives
Gandra da Silva Martins. Desde sua primeira sustentação oral na corte, em 1962,
Ives Gandra participou da elaboração de diversos projetos de lei no país,
inclusive do trabalho da Assembleia Nacional Constituinte de 1986. Sozinho,
escreveu 90 livros, além de 329 em coautoria. Pareceres foram mais de 550, com
a ajuda de sua equipe, que hoje conta com oito advogados. É professor honorário
das universidades San Martin de Porres, no Peru, e Austral, na Argentina. É
ainda professor emérito da UniFMU e da UniFieo, e deu aulas de Direito
Econômico e Constitucional durante 11 anos na Universidade Mackenzie.
No fim de outubro, o professor entregou à comissão especial
do Senado encarregada de elaborar a reforma tributária seu texto de alterações
necessárias. A principal preocupação foi com o ICMS e a guerra fiscal. Sua
sugestão de reduzir a 4% o imposto nas operações interestaduais já foi acatada
pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, que anunciou na última quarta-feira
(7/11) ter chegado a acordo com os estados para que a redução seja gradual.
Crítico de decisões casuísticas, o advogado reconhece que a
postura adotada pelo Supremo ao julgar os réus da Ação Penal 470, o processo do
mensalão, pode não ser adotada em outros casos na corte. A interpretação que dá
à tolerância dos ministros em relação a provas indiciárias para condenar 25 dos
38 réus do processo é de que eles preferiram analisar o crime como algo
sistêmico, e não individual. Segundo o advogado, foi uma resposta satisfatória
à sociedade.
Mas não foi a primeira vez que o tribunal driblou sua
própria jurisprudência. Gandra lembra que, em 1992, às vésperas de seu processo
de Impeachment no Congresso, o então presidente Fernando Collor de Mello pedia
ao Supremo que suspendesse a apreciação na Câmara dos Deputados até que ele
tivesse acesso aos documentos e pudesse se defender. A corte, no entanto, indo
contra seus próprios julgados, negou a suspensão justificando que a votação na
Câmara seria de mera admissibilidade do processo, uma vez que seria o Senado
quem daria a palavra final. “O ministro Moreira Alves caiu em cima de todos os
ministros dizendo: ‘Ele vai perder a Presidência da República e é só um
julgamento de admissibilidade?’”, lembra Ives Gandra. O advogado conta que,
mais tarde, o ministro Carlos Velloso lhe explicou a decisão: “Ives, o Brasil
era ingovernável. Por isso nós decidimos contra a jurisprudência”, conta. O
caso foi julgado em 23 de setembro de 1992 no Mandado de Segurança 21.564, cujo
relator do acórdão foi o ministro Carlos Velloso, que liderou a divergência.
Nas decisões seguintes, porém, o STF continuou exigindo que houvesse
conhecimento das provas quando uma pessoa se defende.
Leia a entrevista:
ConJur — Como está o placar na Justiça entre contribuintes e
fisco?
Ives Gandra da Silva Martins — Muito ruim para os
contribuintes, por uma razão muito simples: os assessores dos ministros
deveriam ser concursados, como os juízes. Participei das bancas de três
concursos para a magistratura federal e estadual. Examinei 7 mil candidatos
para ter menos de cem magistrados aprovados em três concursos. Sei o que um
candidato passa para poder ser juiz. Mas quem decide a maior parte das questões
nos tribunais superiores são os assessores. O assessor não é concursado. Não é
justo que um juiz de primeira instância, cuja decisão vale menos que a decisão
de um ministro, tenha um concurso duríssimo e o assessor de ministro seja
apenas uma pessoa de confiança. Os ministros deveriam escolher seus assessores
entre concursados.
ConJur — Mas boa parte dos assessores são procuradores, que
também são concursados.
Ives Gandra — Mas são procuradores da Fazenda Nacional,
cidadãos cuja função é defender a Fazenda. São licenciados, viram assessores de
ministro e depois voltam a ser procuradores. Eles nunca vão perder a função de
advogados da Fazenda. O resultado é que a esmagadora maioria das decisões nos
tribunais superiores é contra os contribuintes. Com o acúmulo de processos, os
ministros quase sempre são obrigados a seguir a opinião de seus assessores.
Além disso, muitos que entram em concursos vêm das carreiras públicas. Até que
se desvistam da sua roupagem anterior, sua tendência é continuar raciocinando
com os mesmos padrões que tinham quando estavam nas funções. Nos concursos de
que participei para a magistratura, o número de candidatos na segunda fase que
vinham do serviço público era incomensuravelmente maior do que dos que vinham
da advocacia. Percebia nas entrevistas que os vieses eram próprios de quem
estava exercendo uma função. A grande maioria dos candidatos não tinha vocação
para a magistratura. Todos eles tinham prestado concurso para procurador,
delegado, membro do Ministério Público. O que o pessoal quer é segurança de que
não terá mais problema até o fim da vida. Eu compreendo que, em um mundo
competitivo, a advocacia tem altos e baixos. O poder público dá uma segurança
econômica que não se tem na advocacia. Eu admiro os advogados porque eles não
fizeram concurso público, resolveram enfrentar a vida com todos os riscos. Mas
isso não é um desmerecimento a quem faz concurso, senão, não participaria de
bancas. O problema é que, para ser assessor e decidir lá em cima, basta ser
amigo do desembargador ou do ministro. Quem exerce uma função, não pode se
licenciar para ser assessor. Eu já fui convidado para ser desembargador, na
época em que era o tribunal quem convidava. Recusei, porque tenho vocação para
ser advogado. Eu respeito a magistratura, mas eu seria um magistrado ruim.
ConJur — Ao julgar questões bilionárias, que colocam em
lados opostos contribuintes e o fisco, os ministros se impressionam com o
impacto de suas decisões no erário?
Ives Gandra — Pode ser que sim. No caso do crédito-prêmio do
IPI, por exemplo, foi um escândalo. O governo orientou de uma forma e depois
mudou para se beneficiar. O Supremo criou uma verdadeira “Guerra dos Emboabas”
contra os contribuintes. Na Guerra dos Emboabas, os reinóis ofereceram aos
paulistas a vida em troca da rendição. Eles se renderam e foram todos
fuzilados. Então, o fisco diz: “Sigam essa orientação”. Todos seguiram. Daí o
fisco diz: “Vocês, contribuintes brasileiros, não perceberam que o fisco não é
confiável. Agora, terão de pagar aquilo que nós garantimos que vocês não
deveriam pagar”. E o Supremo diz que o fisco tem razão. Em matéria tributária,
a necessidade de recursos para o erário não conhece princípios.
ConJur — A Justiça não existe para tratar de modo desigual
os desiguais? Ou seja, proteger os mais fracos?
Ives Gandra — Tenho uma profunda admiração pela ministra
Ellen Grace [aposentada do Supremo]. Quando ela foi pedir aumento para o
Judiciário, como presidente do Supremo, os jornais criticaram, a OAB criticou.
Ela respondeu: “Mas nós garantimos ao erário R$ 13 bilhões”. A Ordem lembrou
que isso não é garantir nada ao erário, é fazer justiça. Eu conheço a Ellen, é
uma mulher excepcional, uma jurista, minha amiga pessoal. Mas o episódio mostra
um pouco a mentalidade quando se trata de matéria tributária. Nesse particular,
se nós analisarmos o que era o Supremo Tribunal Federal na década de 1980 e
começo dos anos 1990, em comparação com esses últimos anos, vamos constatar
que, no Supremo, o erário quase sempre tem razão. Excepcionalmente não tem.
Mesmo na época do regime militar havia, em matéria tributária, mais segurança
jurídica do que hoje.
ConJur — Quais foram as principais batalhas perdidas e
vencidas?
Ives Gandra — O crédito-prêmio do IPI foi uma batalha
inacreditável que se perdeu. A Cofins sobre o faturamento de profissionais
liberais foi outra, assim como a isenção e a alíquota zero do IPI. O Supremo
sempre declarou que a isenção gerava crédito, até que mudou. A questão da
penhora online de contas bancárias para garantir execuções fiscais é outro
problema. O Código de Processo Civil diz claramente que a cobrança deve ser
feita da forma menos onerosa para o contribuinte. Ele cita bens como garantia.
Mas a Justiça tem feito da forma mais fácil para o erário. A penhora online
prevalece mesmo que arrebente a empresa, que a deixe sem dinheiro para pagar
funcionários. Há ainda a questão do alcance da repetição de indébitos, que era
de dez anos, mas que de repente se transformou em cinco. Se nós analisarmos,
nenhum grande tema tributário teve vitória do contribuinte. Basta o valor ser
grande que o contribuinte não ganha.
ConJur — Qual é a grande discussão tributária atualmente?
Ives Gandra — Uma delas trata do sigilo bancário. Sou
advogado da CNC [Confederação Nacional do Comércio] no caso. O Vicente Greco
Filho é advogado da CNI [Confederação Nacional da Indústria]. Nossa Ação Direta
de Inconstitucionalidade é de 2001, com pedido de medida cautelar. Durante
esses 11 anos, se quebrou o sigilo bancário de tudo quanto é forma. As teorias
do fato consumado, que afirmam ter de se manter uma situação causada por um
fato inconstitucional que perdurou durante muito tempo, terminam infelizmente
impactando as decisões. Por isso, quando for sustentar, vou pedir efeitos
prospectivos para a decisão.
ConJur — Existe sigilo fiscal de pessoa jurídica?
Ives Gandra — Não. A empresa tem que apresentar todas as
suas operações. No balanço, tem que estar tudo lá. Pessoa física é diferente, o
sigilo fala do direito à privacidade individual. Eu nunca defendo o sigilo da
empresa, eu defendo o sigilo do cidadão. É o que está garantido na
Constituição.
ConJur — A decisão do Supremo quanto à inconstitucionalidade
de incentivos fiscais dados à margem do Confaz pelos estados tem preocupado
empresas que se beneficiaram seguindo a lei...
Ives Gandra — ...com o conhecimento de que ela era
inconstitucional.
ConJur — Com o conhecimento?
Ives Gandra — É claro. Porque se a lei tinha que ser
aprovada com a autorização do Confaz e foi aprovada sem essa autorização, todos
tinham o conhecimento. Não é possível uma grande empresa investir em um lugar
sem estudar a lei, sem ter assessoria jurídica.
ConJur — Existia uma norma autorizadora. É justo que a
empresa tenha que recolher retroativamente?
Ives Gandra — Não. O estado deu anistia. Mas continuar o
regime é uma indecência. Tenho a impressão de que os efeitos prospectivos vão
ser dados pelo Supremo. Estou na comissão do Senado que estuda a reforma
tributária. Entregamos o texto no dia 30 de outubro. Nós trabalhamos na
comissão do Senado como sendo isso mais viável. Não propusemos nada, porque o
assunto está na órbita do STF.
ConJur — O fisco já teve uma grande vitória no caso da
inclusão do ICMS na base de cálculo da Cofins ao levar a discussão para a Ação
Declaratória de Constitucionalidade 18, tirando o foco do recurso
extraordinário que já tinha seis votos a favor dos contribuintes. Qual a
probabilidade de os ministros que já votaram alterarem sua posição?
Ives Gandra — Tive um caso que discutia se um membro do
Tribunal de Alçada oriundo do quinto constitucional concorria para o Tribunal
de Justiça nas vagas do quinto ou da magistratura. O Supremo, por sete votos a
quatro, decidiu que o empossado já era magistrado. Daí os magistrados de todo o
Brasil foram ao Supremo, três meses depois. Fui chamado pelo presidente da OAB,
José Roberto Batochio, para fazer a sustentação oral. Era o único advogado no
Plenário. Só havia desembargadores. Senti-me como um torcedor do Santos na
torcida do Corinthians. Fiz a sustentação, mas vi os ministros começarem a
mudar seus votos. Perdi por sete a quatro. O ministro Moreira Alves votou a meu
favor, na linha do que sustentei sobre segurança jurídica. Não era justo um
tribunal mudar sua orientação, sendo que dois ou três meses antes havia
decidido dois casos de outra forma, com a mesma composição. O Moreira Alves
esbravejou: “Os senhores estão dando uma decisão corporativista”. Foi com
violência. Mas eu perdi. Então, às vezes, as pressões fazem diferença.
ConJur — Como o senhor avalia as discussões tributárias em
relação ao preço de transferência?
Ives Gandra — Os critérios adotados para se fazer a média de
preços criam uma margem artificial. É como na substituição tributária do ICMS.
Eu não ter direito a recuperar o valor recolhido no começo da cadeia se o meu
preço de pauta inicial foi superior ao preço de venda final. Cria-se a pauta: seu
produto vai valer 20. Então, você terá de pagar, por antecipação, 18% de ICMS
sobre o valor. Mas eu não consigo vender senão por 17 ou 18. Brinquei até em um
artigo meu, dizendo que o Supremo conseguiu a alíquota “mais ou menos”. É “mais
ou menos” 18% na substituição tributária.
ConJur — Quais serão as mudanças propostas no texto da
reforma tributária da comissão do Senado?
Ives Gandra — Nós definimos, em lei complementar, o que é
benefício, o que é isenção, o que é incentivo fiscal. Definimos os três, porque
está na Constituição que tem que ter uma definição. Quanto ao Confaz,
mantivemos a unanimidade para aprovação de benefícios, mas abrimos uma única
exceção, que será para incentivos de fábrica, que podem ser aprovados por dois
terços do Conselho. Mas o incentivo mínimo nunca poderá ficar abaixo de 4% nas
operações interestaduais e durar mais de oito anos. Na proposta de emenda
constitucional, chegamos às alíquotas de ICMS em um regime de semidestino.
Todas as alíquotas seriam uma única no Brasil inteiro, de 4%. Com isso, o
estado que recebe a mercadoria vai receber 14% do imposto. Já vai haver um
benefício natural, mas elimina-se a guerra fiscal. E criamos uma figura penal.
Um governador que mandar um projeto de incentivo tributário sem aprovação do Confaz
pode estar sujeito a reclusão de quatro anos.
ConJur — Os planejamentos tributários são as novas teses da
moda?
Ives Gandra — São arriscados. Sempre trazem um risco que
pode levar uma empresa, depois de quatro, cinco ou seis anos bem, de repente
ficar inviabilizada. O que deveria se fazer é pressão sobre o Congresso
Nacional por um sistema mais racional. Se nós simplificássemos o sistema
tributário, não precisaríamos de planejamento tributário.
ConJur — É ilegítimo eu diminuir meu tributo como forma de
melhorar meu resultado?
Ives Gandra — Eu não disse isso. Eu acho que é legitimo. Só
que, com a mentalidade dominante hoje no Brasil, é arriscado.
ConJur — Uma lei antielisiva é necessária?
Ives Gandra — Sou contrário. Toda lei antielisiva dá um
campo de arbítrio fiscal monumental. Por que não passou a Medida Provisória 66?
Porque praticamente deixava o fiscal com direito de desconfiar e multar. Se eu
tenho, no Direito Tributário, o princípio da tipicidade fechada, da estrita
legalidade, da reserva absoluta de lei fiscal, como vou admitir o palpite
fiscal para quebrar esses três princípios?
ConJur — Ter uma norma não daria um pouco mais de segurança
em vez de deixar como está?
Ives Gandra — As autuações têm um campo grande de defesa,
enquanto que as normas são taxativas.
ConJur — O que o senhor achou da decisão do Conselho
Nacional de Justiça de anular um concurso para juízes em São Paulo devido à
avaliação subjetiva dos candidatos?
Ives Gandra — Nós fazemos o exame da postura ética. Esse é
um exame feito nas entrevistas pessoais, que ao contrário do que o CNJ disse, é
importantíssimo para que o examinador perceba a estabilidade emocional do
candidato. O CNJ diz que tem que ser público, mas digo que é preciso ser
individual. Aquele cidadão, vitaliciado, vai ficar até os 70 anos no cargo e
pode fazer um mal muito grande com suas decisões. A avaliação psíquica do
candidato é fundamental para verificarmos sua estabilidade. No último exame da
magistratura federal, examinamos cada candidato em entrevista pessoal por duas
horas e meia.
ConJur — As mesmas perguntas eram feitas a todos?
Ives Gandra — Não. Variávamos sempre. Porque, senão, eles
sairiam e falariam nos cursinhos. Todo o processo, a ficha corrida, tudo isso
nós temos. Mas temos que fazer uma avaliação da estabilidade emocional daquele
que vai ser julgador.
ConJur — Em artigo publicado na Folha de S.Paulo em 2011, o
senhor criticou a interpretação que hoje se dá a fatos ocorridos durante o
regime militar, investigados pela Comissão da Verdade. Em sua opinião, a Lei de
Anistia enterrou as situações para ambos os lados da luta até mesmo para a
descoberta da verdade?
Ives Gandra — A Comissão da Verdade não se propôs a examinar
os crimes praticados pelos terroristas contra os militares. No artigo da Folha,
eu falo dos Borgs, um povo fictício da série Star Trek. Ele tinha um comando
central, uma rainha, e todos os povos de outros planetas que eram conquistados
se transformavam em metade humanos e metade máquinas, sob o comando dessa
rainha. Ou seja, havia duas saídas para os derrotados: eram assimilados ou
aniquilados. Típico das ditaduras. Em regimes totalitários não há direito de
defesa. Quem não pensa igual é perseguido, pode ser morto. São exemplos o
nazismo, o comunismo e o fascismo. A Comissão da Verdade só quer ver um lado, é
uma teoria que não admite contestação. E as democracias só existem quando há
contestação. Quando digo que a democracia precisa de oposições, falo de uma
oposição forte, porque o poder tende a ultrapassar e superar todos aqueles que
se opõem a ele. E só com posições fortes é que se pode ter aquilo que John Rawls
chama de “teorias não abrangentes”. As teorias abrangentes não são
democráticas. Quando digo: “A verdade está comigo e ninguém pode ter uma
verdade”, minha intenção, se eu estiver no poder, é fazer com que ela prevaleça
e ninguém adote. As teorias não abrangentes, aquelas que admitem o respeito com
quem pensa diferentemente, são aquelas que permitem a democracia.
ConJur — No julgamento do processo do mensalão, com alta
exposição na mídia, os ministros se mostraram mais receptivos, para condenar, a
elementos que não teriam o mesmo efeito em outros processos?
Ives Gandra — Houve duas teses que se chocaram. Uma delas é
o in dubio pro reo. Nessa tese clássica, a segurança do processo penal não é
uma segurança da sociedade, é uma segurança do criminoso. A ação penal não foi
feita para proteger a sociedade, mas para proteger o acusado. Se o julgador não
estiver convicto, não deve condenar. É a tese que todos os réus defenderam. De
outro lado, temos a tese do crime externo. A nação, como sociedade, viu circular
dinheiro que ninguém sabe para onde foi, com pessoas bem definidas, havendo
nexo causal, ou seja, eu dei o dinheiro para você me fazer aquele favor. Mas a
verdade é que esse dinheiro até hoje não foi explicado. De onde veio e onde foi
parar? A tese que fragilizou o mensalão foi a do Caixa 2. Eles admitiram ter
praticado um crime, mesmo que já prescrito. Oras, se eu recebo um dinheiro para
fazer campanha eleitoral e vou pagar quem vai fazer minha campanha eleitoral,
eu não sei a quem paguei? A tese do Caixa 2 teve um problema de não se saber
para onde foi o dinheiro. Ela entrou como uma tentativa de fazer com que a
prescrição eliminasse o processo, mas fragilizou como crime sistêmico.
Principalmente porque o presidente Lula deu três versões diferentes. Na primeira,
disse: “Fui traído.” Na segunda, disse: “Todo mundo faz.” Na terceira, disse
que não houve mensalão. O próprio presidente auxiliou a não haver uma defesa
consistente e começou a prevalecer a tese do crime sistêmico. A nação ficou
estarrecida de ver tanta gente vinculada ao governo, a um partido político, e
não se saber de onde veio e para onde foi o dinheiro. Evidentemente foi um
choque entre a tese do crime individual e a do crime conjunto sistêmico contra
a nação, contra a sociedade. O Supremo preferiu seguir por essa segunda linha,
que traz um problema: se, no futuro, for aplicado o mesmo entendimento a todo
crime contra a ordem pública, vamos ter uma insegurança maior no Direito. Vão
mudar os costumes políticos no Brasil.
ConJur — O que o senhor acha da transmissão dos julgamentos
pela TV Justiça?
Ives Gandra — Do ponto de vista de universalização do
conhecimento, foi positivo. Fiz minha primeira sustentação no Supremo Tribunal
Federal em 1962. Vi toda a evolução nesses 50 anos. Os julgamentos eram
bastante rápidos. O ministro relatava e os outros ou estavam de acordo ou não.
Ninguém precisava demonstrar conhecimento. A TV Justiça, tornando todos os
ministros artistas de televisão, os obriga automaticamente a terem de
justificar cada voto. Mesmo nos assuntos mais sem transcendência. Muitos
deixaram de falar apenas nos autos e anteciparam votos. A própria imprensa
constantemente diz que ministro tal não é competente e que foi indicado por
amizade. O ministro quase tem obrigação de mostrar que merece estar ali.
ConJur — A decisão final no mensalão servirá para balizar
outros casos?
Ives Gandra — Às vezes, alguns julgamentos podem não
sinalizar uma jurisprudência. Não sei se isso vai acontecer. Mas pode ser que,
nesse caso, aconteça algo semelhante ao que aconteceu com o presidente Fernando
Collor. Quando Collor pediu adiamento da votação de seu Impeachment na Câmara
dos Deputados, que ocorreria às vésperas de uma eleição, alegou não ter tido
acesso aos documentos para formular sua defesa. O Supremo Tribunal Federal,
contra toda a sua jurisprudência, com três votos contrários, dos ministros
Ilmar Galvão, Moreira Alves e acho que Luiz Otávio Gallotti, declarou que ele
poderia ser julgado pela Câmara dos Deputados sem o conhecimento dos
documentos, porque aquilo era apenas um julgamento de admissibilidade, e que
quem iria julgar definitivamente seria o Senado. Foi um absurdo. O ministro
Moreira Alves caiu em cima de todos os ministros dizendo: “Ele vai perder a
Presidência da República e é só um julgamento de admissibilidade?” Ele tem o
direito de se defender conhecendo os termos da acusação. Mas o Supremo, contra
toda a sua jurisprudência, permitiu que o Collor fosse afastado. O ministro
Carlos Velloso, que votou a favor da continuidade do processo, disse: “Ives, o
Brasil era ingovernável. Por isso nós decidimos contra a jurisprudência”. Nas
decisões seguintes, porém, o STF continuou exigindo que houvesse conhecimento
das provas para que a pessoa se defenda.
ConJur — Alguns réus do mensalão cogitaram recorrer da
condenação no Supremo à OEA. Isso faz sentido?
Ives Gandra — Faz sentido para eles. Mas o resultado é
nenhum. O que o Supremo decidir não pode ser mudado lá fora. Quanto a crimes
praticados no Brasil, o Supremo Tribunal Federal tem a última palavra.
ConJur — E quanto ao duplo grau de jurisdição?
Ives Gandra — Na prática, nós não temos duplo grau em tudo o
que existe na Justiça. Nos Juizados Especiais, por exemplo, não temos duplo
grau. Há o Supremo, mas é preciso haver uma boa justificativa para o recurso. O
duplo grau de jurisdição é ter direito a um segundo julgamento. No Supremo, o
duplo grau é admitido em Embargos Infringentes. Quer dizer, se eu tiver quatro
votos, posso recorrer para o próprio tribunal, apresentando novos argumentos.
ConJur — A prerrogativa de foro causa essa distorção nas
ações originárias no Supremo?
Ives Gandra — Não causa, porque cada sistema jurídico é
adaptado à realidade do país. Não existe uma norma internacional que diga: “Os
países que não adotarem o duplo grau de jurisdição nós vamos obrigar a
fazê-lo”. No Brasil, não temos corte constitucional. Quando da Constituinte,
fiz um roteiro para 66 deputados. Como sugestão, dividi o Poder Judiciário em
três: um Poder Judiciário da administração de Justiça; um Poder Judiciário
Constitucional, que seria uma corte constitucional com cortes de derivação,
inclusive; e um Poder responsabilizador da administração pública, que seriam os
Tribunais de Contas. Os Tribunais de Contas como um ramo do Judiciário e não do
Legislativo. E todos com nomeações com o mesmo rigor do Poder Judiciário.
Então, teríamos uma Corte Responsabilizadora, uma Corte de Administração de
Justiça e uma Corte Constitucional. Não aceitaram. Preferiram uma corte que é
constitucional de um lado e última instância da administração de Justiça de
outro, além de instância primária originária de administração, quando julga
senadores, deputados ou o presidente. O problema é que os ministros ficam com o
trabalho acumuladíssimo. A Suprema Corte Americana tem 200, 300 ou 400
processos por ano. Aqui, temos 100 mil processos por ano.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal tem usurpado a função do
legislador?
Ives Gandra — Sim. A toda hora o Supremo muda as regras.
Hoje nós temos insegurança jurídica. Sou contra o ativismo judicial. O Supremo
diz que eles estão apenas interpretando o vácuo legislativo. Mas nos casos de
fidelidade partidária, família homossexual, aborto de feto anencéfalo e uso de
células embrionárias em pesquisas científicas eles inovaram em relação à lei e
à Constituição. Antigamente, quando eu interpretava a lei, dizia que a
jurisprudência do Supremo sobre o caso era tal e a lei diz tal coisa. Hoje,
digo ao cliente: “A lei diz isso, mas eu não sei como o Supremo vai decidir”.
Porque a corte pode fazer uma lei diferente. Por exemplo, o caso de candidato
cassado. O manual da eleição diz que se isso ocorrer em até dois anos depois da
eleição, o novo pleito é direto. Se depois desse prazo, é indireto. Onde é que
está em qualquer Constituição que o candidato derrotado, aquele que o povo não
quis, é quem vai assumir? Outro exemplo: a Constituição fala em família de
homem e mulher. Onde é que está escrito dois homens? Ela diz que homem e mulher
é que podem constituir uma unidade de Estado, e não homem, mulher e qualquer outro
tipo. Se pessoas do mesmo sexo querem ter uma relação, podem ter. Mas não são
uma família, não têm o status, o rótulo familiar. Mas podem ter garantias de
qualquer espécie previdenciária. O conceito de família como base da sociedade
para gerar prole e dar continuidade à sociedade foi o que se pretendeu na
Constituição.
ConJur — E o que fazer diante da omissão do Legislativo?
Ives Gandra — Veja o artigo 103, parágrafo 2º, da
Constituição. Nas ações diretas de inconstitucionalidades por omissão, quando o
Congresso Nacional não faz a lei, cabe ao Supremo Tribunal Federal comunicar o
Poder Legislativo que ele tem que fazer a lei, sem prazo e sem sanção. Quando o
Supremo diz: “Eu vou fazer”, está incinerando o artigo 103, parágrafo 2º. Isso
eu discuti com o Bernardo Cabral [senador relator da Constituinte] na hora de
se escrever a Constituição. Eu queria inserir prazo. Mas ele disse: “Ives, você
acha que eu teria condição de mandar prender 513 deputados e 81 senadores se eu
desse um prazo e eles não fizessem a lei?” Quer dizer, no vácuo, cabe ao
Supremo continuar pressionando para eles fazerem, mas ele mesmo não pode fazer.
ConJur — Isso não compromete a discricionariedade do
magistrado?
Ives Gandra — O magistrado não tem discricionariedade. Ele é
legislador negativo. Quem é legislador positivo é quem foi eleito pelo povo. Eu
não posso substituir 130 milhões de eleitores por um eleitor. O Supremo tem um
único eleitor, que é o presidente da República. O Congresso Nacional, por pior
que seja, tem 130 milhões de eleitores. O pior intérprete do Direito é o que
põe na lei o que ele gostaria que ela tivesse, e tira da lei o que está nela, porque
não lhe agrada. Eu tenho criticado meus amigos do Supremo, que são grandes
juristas, certamente muito melhores do que eu, exatamente por esse ativismo
judicial. O ativismo gera insegurança jurídica. E esse ativismo judicial
começou na era Lula. A mudança na composição foi muito rápida. Antigamente, as
mudanças levavam dois, três anos, o que dava tempo de o novo ministro se
adaptar à forma de pensar do Supremo. Quando você tem 12 ministros indicados
como na era Lula, sendo que oito deles ainda estão na ativa, é um negócio
complicado.
ConJur — Há problemas na indicação de ministros do Supremo?
Ives Gandra — Eu apresentei uma proposta na Constituinte que
não foi aceita pelo Bernardo Cabral. Três instituições apresentariam seis nomes
cada uma, e nós chegaríamos a 18 nomes. Seis seriam indicados pelos tribunais
superiores — dois pelo TST, dois pelo STJ e dois pelo STF —; seis pelo
Ministério Público; e seis pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil. Com o quinto constitucional, oito vindo da magistratura, isso seria
muito mais justo. Porque o presidente teria o poder de escolha, mas entre 18
nomes de quem trabalha com Direito, para não acontecerem indicações políticas.
Eu conheço, em 55 anos na advocacia, um único caso de rejeição, pelo Congresso,
de um indicado para o Tribunal Superior do Trabalho pelo presidente Itamar
Franco. É tudo formal.
ConJur — Como tributarista, o que o senhor achou da
indicação do ministro Teori Zavascki para o Supremo?
Ives Gandra — Ele é um cidadão absolutamente contra os
contribuintes. Mas é um bom jurista. Coerente.
ConJur — Qual é o papel da advocacia brasileira?
Ives Gandra — A advocacia é a instituição mais importante da
democracia. Só na democracia existe o direito de defesa, que é o direito mais
sagrado da advocacia. As outras instituições podem conviver com a ditadura, a
advocacia não. Considero os delegados também muito importantes, porque dão
início ao processo penal. Por isso tenho defendido a equiparação da carreira às
demais carreiras jurídicas.
ConJur — Com a nova Lei de Lavagem de Dinheiro, o advogado
tem a obrigação de entregar o cliente em caso de constatação de crime?
Ives Gandra — A nossa lei da Ordem é especial e essa nova
Lei de Lavagem é uma lei geral. Lei especial não é revogada por lei geral. É só
ler o artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil. Nós temos uma lei que diz
que o advogado, e os escritórios, são invioláveis no exercício de sua função,
conforme o artigo 133 da Constituição.
ConJur — Boa parte dos seus poemas são para sua esposa,
Ruth, também advogada. Ela o auxilia no trabalho?
Ives Gandra — Ela foi minha sócia. Agora não advoga, mas
ainda revê meus pareceres. A parte gramatical, porque o pior revisor é o autor.
Geralmente eu mando o parecer para o cliente e digo: “Depois mando a versão
definitiva.” Ela faz a revisão final até hoje. Eu a conheci na faculdade. Fiz
faculdade enquanto trabalhava com meu pai em uma perfumaria. No quinto ano,
disse que não iria continuar. Foi meu irmão quem continuou o negócio do meu
pai. Daí comecei a advogar e estou advogando até hoje. Advogado em tempo
integral.
ConJur — Quem foi sua maior influência no Direito?
Ives Gandra — Na faculdade, fui aluno do Miguel Reale. Para
mim, foi o maior jurista no Brasil, o maior filósofo. Tive alguns privilégios,
como, por exemplo, ter fundado junto com ele a Academia Internacional de
Direito e Economia. Eu o sucedi na Academia Brasileira de Filosofia. Ele votou
em mim para entrar na Academia Paulista de Letras. Esteve também presente na
minha entrada na Academia Paulista de História. E fizemos alguns livros juntos,
quatro ou cinco livros. Ele era muito meu amigo e foi, de longe, o professor
que mais me influenciou na vida, porque era filósofo e jurista.
ConJur — Quando se deu o interesse pelo Direito Tributário?
Ives Gandra — Quando comecei na advocacia. Houve a mudança
da lei do imposto de consumo, com a introdução do princípio da não
cumulatividade. Achava que todo mundo tinha que começar da estaca zero. Então,
comecei nessa área, porque teve uma mudança total do sistema em 1951. Comecei
na área tributária e fiquei nela até hoje. Tive bons amigos. Os nomes que me
impressionaram foram Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhoa Canto e Carlos da
Rocha Guimarães. Todos elaboraram o Código Tributário Nacional.
ConJur — O senhor é muito próximo do professor Paulo de
Barros Carvalho, um dos maiores teóricos vivos do Direito no país. Mas ambos
têm entendimentos diferentes sobre fatos e normas jurídicas. Quais são essas
diferenças?
Ives Gandra — São as duas grandes vertentes do Direito. A
teoria do Paulo consolida uma linha muito mais voltada à linguagem como
expressão como diferenciadora dos sistemas jurídicos, o que vale dizer: a
lógica jurídica é uma lógica que deve ser cristalina. Lourival Villanova foi a
grande expressão desse pensamento e o Paulo hoje, indiscutivelmente, é a maior
expressão no Brasil dessa linha. Há outra linha, que é a minha, a da
tridimensionalidade, do Miguel Reale. Talvez por essa razão é que nós nos damos
tão bem o Paulo e eu, porque temos essa, não divergência, mas, digamos,
vertentes diferentes. Reale foi meu professor, escrevemos cinco livros juntos e
diversos pareceres. Nós entendemos que o fato jurídico é que é o relevante. A
norma é importante, porque representa a dicção, uma compreensão, mas o Direito
é fundamentalmente o fato compreendido e transformado em norma. A teoria
tridimensional do Direito parte do princípio, na formulação do Reale, de que os
fatos em um determinado momentos são “jurisdicizados”. E nessa
“jurisdiscização” dos fatos jurídicos há uma valoração por parte da autoridade
que vai fazer o Direito, que cria a norma. Portanto, a dicção normativa é
importante, mas apenas representa os fatos que foram gerados. Então, eu tenho
fato, valor e norma. No momento em que surge uma nova norma, ela regulamenta um
fato, que, em função das tensões das realidades humanas, provoca uma nova
tensão, uma nova norma, que cria um novo fato, que cria uma nova norma e, por
isso, o Direito é dinâmico.
ConJur — Há direitos sem normas, então?
Ives Gandra — Na prática, temos situações e sujeitos e
relações entre eles. Há direitos que nascem com a própria pessoa, o que
chamamos de direitos naturais. Não é o Estado quem cria esses direitos
naturais. O direito à vida, por exemplo, é seu. Você nasceu com ele. O Estado
pode deturpar o seu direito, retirá-lo, mas ele nasce com você. Na nossa linha
jusnaturalista e tridimensionalista, damos muita importância ao fato
sociológico e ao fato gerado.
ConJur — O que são direitos naturais?
Ives Gandra — A Declaração Universal dos Direitos Humanos
foi escrita por um jusnaturalista, um cidadão que pensava como nós, que há
direitos inalienáveis que nascem com cada ser humano e todos têm que respeitar.
O maior deles é o direito à vida, à dignidade humana.
ConJur — Qual é o nível de fragilidade das normas?
Ives Gandra — O Direito protege uma sociedade, mas só existe
em um regime democrático enquanto há força na situação e na oposição. Se eu
tenho um regime democrático com forças que se digladiam sem que uma liquide a
outra, tenho um Direito que pode ser estável, porque vai sempre decorrer das
tensões da sociedade democrática, que vai alternar o poder. Sempre que um poder
não tem oposição à altura, atropela a lei, faz o que bem entende. Estamos
vivendo, na América Latina, por exemplo, um processo de inversão da democracia,
visto na Venezuela, na Bolívia, no Equador. Sem oposição válida, eles vão
atropelando e modificando a lei da forma que querem. Na Argentina, viola-se,
por exemplo, direitos de imprensa, porque não há oposição. O poder não conhece
princípios. Quem quer o poder o quer para ficar no poder. As democracias se
fragilizam e o próprio Direito tem mudado de acordo com os interesses do
detentor do poder.
Alessandro Cristo - editor da revista Consultor Jurídico
Elton Bezerra - repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 11 de novembro de 2012.
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