A decretação de intervenção no Banco BVA, ocorrida pouco
tempo depois da liquidação extrajudicial do Banco Cruzeiro do Sul, anotada uma
tentativa frustrada de solução deste último caso pela via do Regime de
Administração Especial Temporária - RAET e acompanhada de idêntica medida
quanto à Financeira Oboé , nos mostra que, os bancos pequenos (conhecidos no
mercado como tamboretes) são capazes de fazer um grande estrago, tal como os
cartuchos de chumbo miúdo disparados com uma espingarda contra um bando de
rolinhas pousadas sobre um fio que, desavisadas do perigo, são apanhadas de uma
vez só por um único tiro.
No caso do BVA, o rombo estaria por volta de R$ 1 bilhão,
número que será efetivamente apurado no curso do processo interventivo que
dificilmente escapará de sua convolação em liquidação extrajudicial. Isto
porque, como se sabe, o ativo principal de um banco não é o estado do seu
caixa, mas o nível de confiança que os depositantes, por sua vez, depositam em
relação a ele. Teria sido precisamente, o aumento dos saques no BVA que
precipitou a sua quebra, dentro do mecanismo da caixa de água que perde líquido
constantemente sem a necessária reposição. Aquela entidade que parece saber
tudo, o mercado, já andava desconfiado há algum tempo da situação do BVA, o que
ajudou a que fosse fechada a torneira da irrigação externa pelo mercado
interbancário. Tentativas de reorganização e de recapitalização interna não
deram certo e, daí, a intervenção inelutável.
No tocante ao Banco Cruzeiro do Sul, o montante do seu
prejuízo, apurado no curso do RAET - Regime de Administração Temporária,
determinado pelo BCB - Banco Central do Brasil foi estimado no patamar de R$ 3
bilhões. Mas, segundo notícias, alguns esqueletos tributários ameaçam sair do
armário, com um possível aumento exponencial da dívida. Vivendo em um mundo que
se acostuma cada vez mais com as cifras astronômicas relativas às crises
bancárias recentes e às dívidas dos governos (na casa dos trilhões) nós
perdemos a perspectiva do significado daquela importância. Vamos fazer umas
contas simples. Aqueles R$ 3 bi seriam suficientes para a compra de mais de
dois mil apartamentos de R$1,5 mi cada um. Ou de 75 mil automóveis compactos,
dotados de todos os equipamentos, inclusive ar-condicionado e direção
hidráulica. Seriam equivalentes à renda de quatro milhões e oitocentos mil
trabalhadores que ganham salário mínimo. Um espanto, como diria alguém.
Não desejo voltar minha atenção no momento para as causas da
quebra daquele banco, mas atentar para o fato de que o estrago por ele feito
não se limitou tão somente a investidores localizados no território nacional,
mas (segundo notícias divulgadas pela imprensa), também a cerca de 58% dos seus
credores, que estão no exterior e, nada admirável neste planeta globalizado,
espalhados por todo o mundo. Boa parte deles adquiriu bônus do Cruzeiro do Sul,
que não terá condições de honrá-los no seu vencimento.
Não me perguntem quem são esses investidores externos e como
foram levados a acreditar nos papéis emitidos por um banco por eles certamente
inteiramente desconhecido. Certamente foram orientados pelos intermediadores de
tais operações no exterior, que lhes passaram a necessária confiança. Pode ser
que tenha pesado na escolha o fato de que se tratava de um banco brasileiro,
cuja economia, como se tem alardeado, teria sido minimamente afetada pelas
crises que se abateram sobre o panorama econômico mundial e que, pelo
contrário, representaria uma das poucas portas de ingresso seguro para
investidores ávidos de lucro e de segurança, esta última frustrada em relação
ao nosso descendente Cruzeiro do Sul.
Quanto aos investidores internos, tenho cá as minhas dúvidas
sobre as razões de sua escolha. Por exemplo, que garantia deu o banco na
colocação daqueles bônus? Tão somente o seu patrimônio? Nada de concreto, como
uma hipoteca, alienação fiduciária ou penhor?
O fato é que o FGC que administrava aquele banco no RAET
havia oferecido um plano fundado em um deságio elevado em relação aos créditos
contra o banco (que poderia chegar em, alguns casos, até a 70% do seu valor),
combinado com uma eventual proposta de venda da instituição a algum grupo
eventualmente interessado. As dificuldades do plano estavam em que, além de
correr contra o tempo, ele se referia a uma grande quantidade de investidores
pelo mundo afora, que deveriam se manifestar em curto prazo. Como o plano não
deu certo, o BCB decretou a liquidação extrajudicial do Cruzeiro do Sul, única
saída restante.
Por oportuno é de se destacar que o FGC tem atuado como
emprestador de última instância, atividade tradicionalmente própria e
indelegável dos bancos centrais, estando arriscado a botar dinheiro em um saco
sem fundo e perder de vista a função precípua para a qual foi criado. Além
disto, ao atuar na gestão de um regime de administração especial temporária,
seus administradores correm o risco de se verem envolvidos com a
responsabilidade civil especial da lei 6.024/74, caso sejam verificados
prejuízos surgidos durante o período de tal gestão, que depois venha a se
transformar em liquidação extrajudicial. Isto seria tragicômico.
A pergunta clássica é feita no mercado: onde estava o BCB
enquanto o estrago nascia e ia crescendo feito massa de pão fermentada? A mesma
coisa se deu quanto aos casos dos bancos Santos, Panamericano e mais
recentemente o Schahim e o Prosper e a financeira Oboé, tendo o primeiro
apresentado um rombo de R$ 1 bilhão, conforme notícias dadas pela imprensa. O
esquema fraudulento achou uma brecha para iludir a fiscalização do BCB, ou seja,
operações abaixo de cinco mil reais, que foi eficaz durante um tempo bastante
longo, cerca de sete anos. Isto é muito preocupante. Testes mais acurados
deveriam ser capazes de identificar a fraude, principalmente porque seus
efeitos se multiplicam acentuadamente ao longo do tempo. Mas talvez a
preocupação possa ir mais longe ainda: se alguns bancos pequenos podem enganar
o órgão fiscalizador durante algum tempo, o que não se dirá de um banco grande
que esteja enfrentando problemas? Quanto tempo e qual o volume de perdas seria
necessário para se aferir existência de grandes prejuízos em tais instituições,
capazes de roer boa parte ou até mesmo todo o seu patrimônio, tornando-o
negativo?
É claro que um grande problema da fiscalização feita pelo
BCB está na existência de fraudes. Neste caso, é claro, não adianta ao inspetor
procurar no Livro Razão uma conta denominada Operações Fraudulentas. Ela não
existe. E sabe-se que as quebras mais recentes de instituições financeiras
(todas do tipo tamborete) estiveram fundadas em diversos tipos de fraudes
(ativos inexistentes ou superavaliados, passivos omitidos ou minorados, riscos
subdimensionados, garantias fictícias, empresas fantasmas para os quais eram
concedidos empréstimos, etc.).
Certamente uma reformulação do sistema de fiscalização a
cargo do BCB, com uma atuação mais presencial, como se dava no passado, lhe
dará melhores condições não de impedir fraudes ou operações temerárias, mas de
apurá-las ainda no seu berço, não deixando que a criança pule a grade e saia
fazendo maiores estragos pelo mercado afora.
O BCB anunciou à imprensa, em entrevista do diretor Anthero
Meirelles que a onda de problemas no setor financeiro teria chegado ao fim
"O Estado de São Paulo", de 21 de outubro deste ano, p. B8). A quebra
de sete instituições em dois anos teria encerrado um ciclo originado ao tempo
da crise bancária internacional.
Ainda que assim seja, é preciso dar mais segurança ao
patrimônio das famílias e das empresas que recorrem às instituições financeiras
para depósito e aplicação dos seus recursos nos mais diversos tipos de
operações necessárias para a criação de um sistema financeiro eficiente,
indispensável ao salutar giro da economia. O tombo de um tamborete pode
machucar tanto quanto cair de um banco alto. Principalmente quando o cliente já
havia sido afetado anteriormente por osteoporose financeira, ou seja, finanças
tornadas em pó, que lhe impedem de uma recuperação adequada que não mais se
repetirá. Ver para crer.
O BCB reconheceu na aludida entrevista que seu sistema de
fiscalização apresentava falhas, tendo especialmente a partir do caso do Banco
Panamericano adotado uma série de medidas voltadas para aa regulação e a
supervisão do SFN, mediante o diagnóstico da situação e das fragilidades até
então existentes, com a adoção de medidas destinadas a superá-las. Entre outros
pontos e um deles é fundamental, o BCB desenvolveu um trabalho voltado para a
análise de viabilidade e de confiabilidade dos dados obtidos de todo o SFN,
sobre os quais desenvolvia os trabalhos indiretos de fiscalização. Foi fechada
uma porta, representada pelo rebaixamento do limite de acompanhamento das
operações de crédito, reduzido de R$ 5 mil para R$ 1 mil. A coisa funcionava
como os preços enganosos de certas lojas: eram realizados milhares de negócios
de R$ 4,99, que escapavam ao controle do sistema. E, como se sabe, cesteiro que
faz um cesto, faz um cento, e por aquele caminho não se percebeu com uma
necessária antecedência a existência de um grande mecanismo de fraude.
Claro, não há sistema perfeito de fiscalização, mas não se
pode deixar a raposa tomar conta do galinheiro sem que o dono coloque junto
dela um cão de guarda. Valem aqui duas historinhas. Na década de setenta do
século passado quebrou um banco importante de uma cidade vizinha a São Paulo.
Naquela época os bancos pequenos proliferavam e eram privilegiados pela
população das cidades onde estavam instalados porque conhecia pessoalmente o
dono, em que confiavam cegamente. Ora, tal banco quebrou e que parecia mais
surpreso era o próprio dono, ainda que em suas desculpas pudesse parecer que
estaria desejando ganhar um Oscar de interpretação. Mas o mistério foi logo
revelado. Aquele banco mantinha um esquema fraudulento combinado com muitos
clientes de remuneração de depósitos à vista, mediante o pagamento de um juro
proporcional sobre o saldo médio de seus depósitos. Par fazer tal conta, depois
do expediente funcionava em uma salinha discreta um setor de contabilidade
paralela (o famoso Caixa 2). Acontece que depois de se encerrar o expediente do
Caixa 2, tendo todo mundo ido embora para casa, o contador e mais alguém de sua
confiança, operava um Caixa 3, por onde levava embora o dinheiro do patrão.
Assim, o BCB recebia os dados do Caixa 1, o dono do Caixa 2 e o contador e sua
turma embolsavam a verba do Caixa 3. Se o BCB tivesse dado uma incerta naquele
banco, certamente teria apanhado a raposa com mais de uma galinha nos dentes.
Em outro episódio encontrava-me com um colega inspecionando
diretamente um grande grupo financeiro nacional, eu no banco de investimento e
ele no banco comercial. A instituição tinha um diretor que, entre outras
incumbências, acompanhava de perto o andamento dos trabalhos de fiscalização.
Cada documento que era solicitado por nós era objeto de uma cópia para aquele
diretor. Era um tempo de inflação elevada e as instituições ganhavam um bom
dinheiro nas aplicações over-night. Além disto, quanto mais tempo levavam para
pagar uma operação a um cliente, sem correção monetária, maior era o seu lucro.
Assim sendo, foi montada naquela instituição um esquema fraudulento de
retardamento do cumprimento de obrigações para os clientes e o grande volume de
recursos era disfarçado na conta "Correspondentes no País", por meio
da qual o dinheiro circulava rapidamente de forma meramente escritural, de
praça em praça, sendo difícil identificar a fraude. Ora, em certo momento
quando pedimos alguns balancetes da instituição, o boy que nos atendia, errou
os destinatários e nos entregou as vias do Caixa 2, juntamente com as do Caixa
1, que eram as do diretor da área. Não deu outra. Na mesma hora colocamos os
papéis em baixo do braço e fomos denunciar o caso ao chefe da fiscalização.
Isto que dizer que, mesmo como resultado de um acidente, a nossa presença
pessoal na instituição gerou certo nível de estresse interno e causou um erro
pelo qual a instituição foi devidamente castigada.
___________
* Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa - professor de Direito
Comercial da USP, consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados e
ex-inspetor e ex-procurador do Banco Central do Brasil.
Migalhas, 12 de novembro de 2012.
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