Bancos, carnês de lojas, financeiras, cartão de crédito: as
opções que o brasileiro tem atualmente no mercado para dispor de dinheiro e
engrossar a lista de endividados no país é grande. Dados do Banco Central
revelam que, até setembro, quase 61 milhões de pessoas tinham operações de
crédito ativas em instituições financeiras. E a expectativa do Banco Central é
que os atuais clientes tomem novos financiamentos.
O credor tem o direito de receber e o devedor tem o dever de
pagar. Porém, o inverso também é verdadeiro: o pagamento é um direito para o
devedor tanto quanto o recebimento é um dever para o credor. Deixar de pagar
significa entrar em mora, acarretando juros sobre o valor devido e até a
inscrição do nome nas listas do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), do Serasa
e do Banco Central, que são as referências para o mercado na hora de avaliar a
idoneidade do cliente. E o bom pagador quer fugir dessas situações.
Há casos em que a lei autoriza o depósito judicial, “de quantia ou coisa
devida”, por meio de ação de consignação em pagamento. O litígio sobre o objeto
de pagamento é apenas uma das hipóteses em que a consignação é admitida. Ela
serve para liberar o devedor de sua obrigação, ainda que de modo indireto, e
está prevista no Código de Processo Civil (CPC, artigo 890). O tema já foi
tratado em diversos julgamentos no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Trata-se do depósito judicial ou bancário do que é devido, mecanismo que pode
ser utilizado em diversas situações, não apenas quando houver discordância
sobre o valor da dívida. O artigo 335 do Código Civil de 2002 prevê que a
consignação é possível, ainda, quando o credor não for conhecido, não puder ou
não tomar a iniciativa de receber; se o credor for incapaz de receber, ou
residir em local de acesso perigoso ou difícil; ou se houver dúvida sobre quem
tem legitimidade para receber.
Adroaldo Furtado Fabrício, em Comentários ao Código de Processo Civil,
assevera que o devedor é titular de direitos. “E não somente o direito de
apenas pagar nos limites do devido e não antes do vencimento. O devedor é
juridicamente interessado na própria exoneração, porque a permanência do débito
é uma situação constrangedora e potencialmente danosa”, explica o doutrinador.
E conclui: “O direito não poderia deixar de proteger esse interesse do devedor
na própria liberação, de modo que não há impropriedade em falar-se de um
direito subjetivo à liberação”.
Parcela controvertida
Em decisão tomada em abril de 2011, a Segunda Turma do STJ
entendeu que o credor pode levantar os valores consignados pelo devedor, sem
prejuízo do seguimento do processo quanto à parcela controvertida da dívida
(REsp 1.132.662). No julgamento, a Turma rejeitou recurso da sociedade
mantenedora de um hospital no Piauí em ação contra a companhia energética do
estado (Cepisa).
A sociedade propôs ação para revisar o contrato de
fornecimento de energia elétrica. Fez, ainda, a consignação de débitos
integrais correspondentes às faturas de energia consumida. Após a sentença,
favorável à sociedade, a Cepisa apelou, mas levantou os valores depositados.
Diante disso, a sociedade questionou o seguimento do processo. Para ela, com o
ato, a Cepisa teria reconhecido os valores como incontroversos e seu pedido
como procedente.
No entanto, o ministro Mauro Campbell Marques discordou. Disse que a própria
natureza da ação consignatória pressupõe a incontrovérsia dos valores
depositados, ao menos do ponto de vista do devedor. O relator esclareceu que,
se o credor ressalva a discordância com os valores depositados, não há por que
dar a dívida por quitada.
O artigo 899, parágrafo 1º, do CPC ainda permite que o réu
na ação de consignação levante, desde o início, a quantia depositada, mas
determina o seguimento do processo quanto aos valores controvertidos.
Mora de quem?
Em julgamento ocorrido em junho de 2012, a Terceira Turma
negou recurso da Petrobras, que questionava a mora do devedor em razão de
atraso no pagamento de pensão por morte em favor dos pais de um trabalhador,
vítima de acidente de helicóptero em uma plataforma petrolífera (REsp
1.131.377).
A maioria da Turma, seguindo o voto do ministro Paulo de Tarso Senseverino,
entendeu que a dificuldade no pagamento, por falta de fornecimento dos dados
dos beneficiários para inclusão na folha, não afastava a mora, uma vez que
existia a possibilidade de depósito judicial do valor devido para evitar a
caracterização do atraso.
Apenas o ministro Massami Uyeda, relator original do recurso, afastava a mora,
por entender que a propositura de ação de consignação em pagamento, para
eximir-se da obrigação, é uma faculdade do devedor. O ministro sustentou a tese
de que, na hipótese, o que havia era “mora do credor”, devendo ser a ele
transferida a responsabilidade pelo inadimplemento.
Consignação de coisa
No julgamento do REsp 444.128, a Primeira Turma decidiu que
a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos poderia propor ação de
consignação em pagamento, objetivando o depósito judicial de documentos sob sua
guarda provisória, bem como para extinguir a obrigação de devolvê-los, tal como
determina a Lei 8.666/93.
No caso, uma empresa do Paraná participante de licitação obteve liminar em
mandado de segurança para ingressar na concorrência, mas, no julgamento do
mérito, não teve sucesso. No entanto, ainda que inabilitada, recusava-se,
injustificadamente, a receber de volta os documentos relativos à sua
participação.
A relatora, ministra Denise Arruda, atualmente aposentada, asseverou em seu
voto que se tratava de consignação de coisa, prevista no artigo 890 do CPC.
Disse que, embora aquele não fosse “exemplo clássico” de ação consignatória,
reunia os elementos necessários para seu cabimento. Entre os documentos, havia
uma apólice de seguros no valor de R$ 350 mil, o que, na visão da relatora,
indicaria o “manifesto caráter econômico dos documentos e o consequente
interesse na sua devolução”.
Objeto da obrigação
Em caso semelhante, julgado em 2006, a mesma Primeira Turma
negou recurso de devedor que pretendia utilizar a ação de consignação em
pagamento para obrigar a Fazenda Nacional a analisar documentos depositados,
com a finalidade de que fosse reconhecida eventual compensação de créditos
(REsp 708.421).
O relator, ministro Francisco Falcão, considerou que a recusa do credor foi
justa. Ainda que a lei autorize a consignação de “coisa”, tal coisa deve ser a
coisa devida, a coisa que constitui o objeto da obrigação, não outra, afirmou.
Conforme o ministro, o credor não pode ser “obrigado a receber prestação
diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”.
Liberação de dívida fiscal
O STJ já externou entendimento segundo o qual a ação de
consignação em pagamento é meio hábil para a liberação de dívida fiscal quando
o contribuinte pretende eximir-se do pagamento de “consectários legais” que
considera indevidos, tendo o fisco condicionado o pagamento do tributo à
satisfação desses acessórios (REsp 55.911).
O artigo 164 do Código Tributário Nacional (CTN) permite que a importância do
crédito seja consignada judicialmente pelo contribuinte nos casos de “recusa do
recebimento, ou subordinação deste ao pagamento de outro tributo ou de
penalidade, ou ao cumprimento de obrigação acessória”.
Favor fiscal
Há pelo menos oito anos, foi firmada a orientação do STJ no sentido de que a
ação de consignação em pagamento é inadequada para forçar a concessão de
parcelamento do crédito fiscal, ou discutir a exigibilidade e a extensão do
crédito. Em matéria tributária, as hipóteses de consignação em pagamento se
restringem às previstas no artigo 164 do CTN.
Esse entendimento foi reafirmado no julgamento do REsp 1.020.982. O relator,
ministro Mauro Campbell Marques, afirmou, citando precedentes, que a prática é
uma burla à legislação, afinal o deferimento do parcelamento do crédito fiscal
subordina-se ao cumprimento das condições legalmente previstas.
Débito previdenciário
Da mesma forma, a ação consignatória de pagamento não serve
como autorização para parcelamento de débito previdenciário (REsp 692.603). Com
esse entendimento, a Segunda Turma do STJ confirmou decisão do Tribunal de
Justiça gaúcho, para negar o recurso de empresa que alegava tal direito.
A empresa pretendia depositar 1/240 da dívida relativa à contribuição
previdenciária em atraso, com o fim de parcelar o crédito tributário. O
tribunal estadual negou o pedido. No STJ, a ministra Eliana Calmon, relatora do
recurso, afirmou que a ação consignatória é ação nitidamente declaratória, com
alcance limitado à extinção da dívida pelo pagamento em questão, “visando à
liberação do devedor, quando satisfeita a dívida em sua integralidade”.
Levantamento de valor
No julgamento do REsp 568.552, a Primeira Turma decidiu que
desistentes de ação de consignação movida com o objetivo de pagar financiamento
do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) não têm direito de levantar valor
depositado a menor. No caso analisado, a Caixa Econômica Federal (CEF)
conseguiu reverter decisão da segunda instânica, que havia sido favorável aos
consignantes. Eles desistiram da ação após depositar quantia inferior à devida.
No STJ, a CEF obteve o direito de levantar os valores depositados a menor na
ação de consignação. De acordo com o voto do relator, ministro Luiz Fux
(atualmente no Supremo Tribunal Federal), havendo desistência da ação e
levantada a quantia depositada, a quitação parcial produzirá seus efeitos no
plano do direito material (garantia do direito dos autores), enquanto, sob o
ângulo processual, a ação não poderá ser novamente proposta pelo valor total da
dívida, mas sim pelo resíduo.
No caso, houve contestação da CEF quanto ao valor, e perícia
posteriormente realizada comprovou a insuficiência do depósito. A norma legal
estabelece que, após a alegação de insuficiência do depósito, o réu (no caso, a
CEF) pode levantar desde logo a quantia ou a coisa depositada, ou seja, antes
da apreciação da matéria de fundo (mérito) da causa. Conforme alegou a CEF, se
o réu pode levantar o montante depositado no curso da ação, teria razão em
requerer esse direito no caso de desistência.
O ministro Fux explicou que a reforma do CPC introduziu o
parágrafo 1º no artigo 899, possibilitando o levantamento das quantias pelo
consignado (a CEF) quando alegada em contestação a insuficiência do depósito.
"Trata-se de faculdade do credor, independentemente de concordância por
parte do consignante", acrescentou o relator.
Fonte: STJ