A retenção do IR na fonte sobre a remessa de receita
auferida na prestação de serviços por não residentes em território brasileiro
foi debatida em nossas cortes judiciais com certa atenção, durante o primeiro
semestre de 2012. O presente estudo irá analisar a correta interpretação a ser
dada ao artigo sobre lucros empresariais constante nos tratados internacionais
para evitar a dupla tributação da renda, celebrados pelo Brasil com outros
Estados Soberanos signatários, quando ocorre este tipo de prestação de serviço.
A análise, de maneira geral, irá abranger tanto a prestação de serviços não
técnicos quanto aqueles que são considerados como serviços técnicos sem a
transferência de tecnologia.
No início deste ano, uma decisão oriunda do TRF da 3ª
região1 chamou a atenção, tendo em vista o fato de divergir de posicionamento
do Poder Executivo que, apesar de tecnicamente não ser o mais correto (conforme
passaremos a defender), estaria se sedimentando em face de inúmeras decisões do
Poder Judiciário pela sua validade.
O posicionamento consolidado a que nos referimos trata-se da
interpretação dada pelo Poder Executivo, através da Secretária da Receita
Federal do Brasil, a fatos que, a princípio seriam abrangidos em tratados
internacionais para evitar dupla tributação, no artigo 7º, referente ao lucro
empresarial. A Secretária da Receita Federal do Brasil, através do ato
declaratório interpretativo COSIT 1, de 5 de janeiro de 20002, deixa claro o
posicionamento das autoridades tributárias federais brasileiras no sentido de
que, a renda proveniente dos serviços técnicos prestados em território
brasileiro por não residentes não se enquadraria com lucro empresarial, mas,
sim, como "receitas diversas", cuja previsão existe em alguns
tratados assinados pelo Brasil.
Sucede, contudo, que, conforme passaremos a demonstrar
sobejamente nas próximas linhas, tal posicionamento é equivocado. A renda
decorrente de contratos de prestação de assistência técnica e de serviços
técnicos deve ser considerada como "lucro empresarial", merecendo o
tratamento previsto nos tratados tributários internacionais (em sua maioria no
artigo 7º).
Assim sendo, o fato de surgir na esfera judicial,
recentemente, uma nova decisão apontando tal equívoco do Poder Executivo, acaba
gerando uma expectativa de correção e correta aplicação do direito, o que,
diretamente acarreta em uma segurança àqueles que, através de uma interpretação
concisa das normas, planeja a realização de suas atividades econômicas em
território brasileiro.
Neste diapasão, procuramos traçar uma análise das principais
questões referentes ao tema ora apresentado, a fim de propiciar não só um
esclarecimento, segundo nosso ponto de vista, mas, ao mesmo tempo, conceder ao
leitor requisitos para o início de um debate sobre o tema, que espera seja
aprofundado pela doutrina e pelo Poder Judiciário, cujo posicionamento vem
mudando.
Como é cediço, os tratados internacionais para evitar a
dupla tributação da renda acabam seguinte a convenção modelo da OCDE, mesmo por
aqueles países que não são membros da organização, como é o caso do Brasil.
Dessa forma, a fim de viabilizar uma interpretação unânime de alguns
dispositivos, a organização em voga publica os comentários aos artigos e
dispositivos de sua convenção modelo, onde existem ressalvas de alguns países,
membros ou não.
No presente estudo, o foco da análise será o artigo 7º da
convenção modelo que trata dos lucros empresariais. Para fins didáticos iremos
utilizar o tratado celebrado entre o Brasil e a França para evitar dupla
tributação da renda, apresentando a redação ali prevista. Se for o caso,
faremos menção no que diverge da convenção modelo.
Pois bem, a redação do artigo 7º, encontrada nos tratados
internacionais tributários, é a seguinte:
ARTIGO VII
Lucros das empresas
1. Os lucros de uma
empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não
ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante por meio de
um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade
desse modo, seus lucros poderão ser tributados no outro Estado, mas unicamente
na medida em que forem imputáveis a esse estabelecimento permanente.
2. Quando uma empresa
de um Estado Contratante exercer sua atividade no outro Estado Contratante por
meio de um estabelecimento permanente ai situado, serão imputados, em cada
Estado Contratante, a esse estabelecimento permanente os lucros que este
obteria se constituísse uma empresa distinta e separada que exercesse
atividades idênticas ou similares, em condições idênticas ou similares, e
transacionasse com absoluta independência com a empresa da qual é um
estabelecimento permanente.
3. No cálculo dos
lucros de um estabelecimento permanente, é permitido deduzir as despesas que
tiverem sido feitas para a realização dos fins perseguidos por esse
estabelecimento permanente, incluindo as despesas de direção e os gastos gerais
de administração igualmente realizados.
4. Nenhum lucro será
imputado a um estabelecimento permanente pelo simples fato de esse
estabelecimento permanente comprar mercadorias para a empresa.
5. Quando os lucros
compreenderem elementos de rendimentos tratados separadamente nos outros
artigos da presente Convenção, as disposições desses artigos não serão afetadas
pelas disposições deste Artigo.
Como se observa, no caso de uma empresa residente de um
primeiro país signatário prestar serviços em um segundo país signatário, sem
ali possuir um estabelecimento permanente, acaba gerando o direito, a esta
empresa, de não ser tributada no segundo país signatário, mas somente naquele
em que reside.
Tal posicionamento é bastante claro e basta uma
interpretação literal do dispositivo em tela. Ademais, os comentários da OCDE
acabam confirmando tal entendimento.
Não obstante a clareza do dispositivo acima transcrito, a
Secretária da Receita Federal do Brasil editou ato interpretativo onde afasta
tal entendimento, e, que acabou gerando a controvérsia ora analisada.
Entre as atribuições da Secretária da Receita Federal do
Brasil está a de harmonizar os atos administrativos executados por seus
servidores na aplicação da legislação tributária federal. Para tanto, muitas
das vezes, acaba editando atos interpretativos que detalha a forma como seus
agentes públicos devem aplicar as leis tributárias na realização de suas
competências.
Neste diapasão, no dia 5 de janeiro de 2000 foi publicado o
ato declaratório (normativo) COSIT 1 cuja redação, em seu inteiro teor, é a
seguinte:
Ato Declaratório (Normativo) COSIT nº 001, de 5 de janeiro
de 2000
Dispõe sobre o tratamento tributário a ser dispensado às
remessas decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e
serviços técnicos sem transferência de tecnologia.
O
COORDENADOR-GERAL SUBSTITUTO DO SISTEMA DE TRIBUTAÇÃO, no uso das atribuições
que lhe confere o art. 199, inciso IV, do Regimento Interno aprovado pela
Portaria MF nº 227, de 3 de setembro de 1998, e tendo em vista o disposto nas
Convenções celebradas pelo Brasil para Eliminar a Dupla Tributação da Renda e
respectivas portarias regulando sua aplicação, no art. 98 da Lei nº 5.172, de
25 de outubro de 1966 e nos arts. 685, inciso II, alínea "a", e 997
do Decreto nº 3.000, de 26 de março de 1999, declara, em caráter normativo, às
Superintendências Regionais da Receita Federal, às Delegacias da Receita
Federal de Julgamento e aos demais interessados que:
I -
As remessas decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e de
serviços técnicos sem transferência de tecnologia sujeitam-se à tributação de
acordo com o art. 685, inciso II, alínea "a", do Decreto nº 3.000, de
1999.
II
- Nas Convenções para Eliminar a Dupla Tributação da Renda das quais o Brasil é
signatário, esses rendimentos classificam-se no artigo Rendimentos não
Expressamente Mencionados, e, conseqüentemente, são tributados na forma do item
I, o que se dará também na hipótese de a convenção não contemplar esse artigo.
III
- Para fins do disposto no item I deste ato, consideram-se contratos de
prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de
tecnologia aqueles não sujeitos à averbação ou registro no Instituto Nacional
da Propriedade Industrial - INPI e Banco Central do Brasil.
Conforme se infere, e já aduzido na introdução do presente
estudo, a Secretária da Receita Federal, através do ato declaratório acima
transcrito, entende que os rendimentos decorrentes da prestação de serviço
técnico e de assistência técnica sem a transferência de tecnologia serão
classificados, nos tratados tributários internacionais pactuados pelo Brasil,
como rendimentos não expressamente mencionados, o que acabe acarretando a
incidência tributária do Imposto de renda retido na fonte, em conformidade com
o artigo 685, inciso II, alínea "a", do decreto 3.000/99 –
Regulamento do Imposto de Renda.
Ora, tal entendimento nada mais é do que uma forma indireta
de dizer que a Receita Federal não irá deixar de tributar o rendimento auferido
no Brasil por prestador de serviço residente no exterior. Tal posicionamento
acaba acarretando, além da insegurança jurídica daquele que entendia pela
correta aplicação do tratado, em uma dupla tributação da renda, posto que, no
outro Estado signatário do tratado internacional a aplicação do tratado se dará
de maneira correta, qual seja, a incidência tributária, como se somente ali
ocorresse.
Quando as questões eram levadas aos tribunais pátrios, até
pouco tempo atrás, o entendimento era no sentido de que a incidência tributária
do imposto de renda retido na fonte nas situações descritas no ato declaratório
COSIT 1/00 estariam corretas. Porém, no presente ano, através do julgamento
proferido nos autos da Apelação Cível / Reexame Necessário nº
0024461-74.2005.4.03.6100/SP, o TRF da 3ª região decidiu da seguinte forma:
DIREITO TRIBUTÁRIO. TRATADOS
INTERNACIONAIS. IMPOSTO DE RENDA RETIDO NA FONTE. ARTIGO 7º, LEI 9.779/99.
HONORÁRIOS. SERVIÇOS PRESTADOS NO EXTERIOR. EMPRESA ESTRANGEIRA. CONTRATANTE
BRASILEIRA. REMESSA AO EXTERIOR. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. TRIBUTAÇÃO EXCLUSIVA NO
PAÍS DE DESTINO.
1. Consolidada a jurisprudência da
Suprema Corte no sentido de que tratados internacionais, regularmente
incorporados ao direito nacional, não têm superioridade hierárquica sobre o
direito interno, assim a definição da norma a prevalecer, em caso de antinomia,
sujeita-se à verificação da efetiva revogação, ou não, da anterior pela
posterior.
2. Caso em que se postula a aplicação
de acordos internacionais, destinados a evitar a dupla tributação, em matéria
de imposto de renda e capital, firmados pelo Brasil com: Alemanha (Decreto
Legislativo 92/75 - f. 84/102), Argentina (Decreto Legislativo 74/81 - f.
103/119v), Áustria (Decreto Legislativo 95/75 - f. 120/136), Bélgica (Decreto
Legislativo 76/72 - f. 137/154v), Canadá (Decreto Legislativo 28/85 - f.
155/164v), Chile (Decreto Legislativo 331/03 - f. 165/185), Espanha (Decreto
Legislativo 76.975/76 - f. 185/201v), França (Decreto Legislativo 87/71 - f.
202/218), Itália (Decreto Legislativo 77/79 - f. 219/237), Japão (Decreto
Legislativo 43/67 - f. 238/252), Portugal (Decreto Legislativo 188/01 - f.
253v/271v), e República Tcheca e Eslováquia (Decreto Legislativo 11/90 - f.
272/280). 2005.61.00.024461-1/SP
3. Os tratados internacionais dispõem,
basicamente, que "Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são
tributáveis nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro
Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a
empresa exercer sua atividade na forma indicada, seus lucros serão tributáveis
no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem atribuíveis a esse
estabelecimento permanente. Quando uma empresa de um Estado Contratante exercer
sua atividade no outro Estado Contratante através de um estabelecimento
permanente aí situado, serão atribuídos em cada Estado Contratante, a esse
estabelecimento permanente os lucros que obteria se constituísse uma empresa
distinta e separada exercendo atividades idênticas ou similares, em condições
idênticas ou similares, e transacionando com absoluta independência com a
empresa de que é um estabelecimento permanente. No cálculo dos lucros de um
estabelecimento permanente, é permitido deduzir as despesas que tiverem sido
feitas para a consecução dos objetivos do estabelecimento permanente, incluindo
as despesas de direção e os encargos gerais de administração assim realizados.
Nenhum lucro será atribuído a um estabelecimento permanente pelo simples fato
de comprar bens ou mercadorias para a empresa.Quando os lucros compreenderem
elementos de rendimentos tratados separadamente nos outros artigos do presente
acordo, as disposições desses artigos não serão afetadas pelo presente
artigo."
4. Para defender a incidência do
imposto de renda, em casos que tais, a PFN invocou o Ato Declaratório Normativo
COSIT 01/2000, e o artigo 7º da Lei 9.779/1999. Dispõe o primeiro, no que ora
releva: "I - As remessas decorrentes de contratos de prestação de
assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia
sujeitam-se à tributação de acordo com o artigo 685, II, alínea 'a', do Decreto
nº 3.000/99; II - Nas Convenções para Eliminar a Dupla Tributação da Renda das
quais o Brasil é signatário, esses rendimentos classificam-se no artigo
Rendimentos não Expressamente Mencionados, e, conseqüentemente, são tributados
na forma do item I, o que se dará também na hipótese de a convenção não
contemplar esse artigo".
5. Todavia, ato normativo da
Administração não cria hipótese de incidência fiscal e, além disso, a situação
nela disciplinada refere-se apenas à serviços técnicos, não equivalentes aos
que são discutidos na presente ação. Já o artigo 7º da Lei 9.779/1999
estabelece que "os rendimentos do trabalho, com ou sem vínculo
empregatício, e os da prestação de serviços, pagos, creditados, entregues,
empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, sujeitam-se à
incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de vinte e cinco por
cento".
6. Não houve revogação dos tratados
internacionais pelo artigo 7º da Lei 9.779/1999, pois o tratamento tributário
genérico, dado pela lei nacional, às remessas a prestadores de serviços
domiciliados no exterior, qualquer que seja o país em questão, não exclui o
específico, contemplado em lei convencional, por acordos bilaterais. Embora a
lei posterior possa revogar aanterior ("lex posterior derogat
priori'", o princípio da especialidade ("lex specialis derogat
generalis") faz prevalecer a lei especial sobre a geral, ainda que esta
seja posterior, como ocorreu com a Lei 9.779/1999.
7. Acordos internacionais valem entre
os respectivos subscritores e, assim, tem caráter de lei específica, que não é
revogada por lei geral posterior, daí porque a solução do caso concreto
encontra-se, efetivamente, em estabelecer e compreender o exato sentido,
conteúdo e alcance da legislação convencional, a que se referiu a inicial. Esta
interpretação privilegia, portanto, o entendimento de que, embora não haja
hierarquia entre tratado e lei interna, não se pode revogar lei específica
anterior com lei geral posterior. Ademais, estando circunscritos os efeitos de
tratados às respectivas partes contratantes, possível e viável o convívio
normativo da lei convencional com a lei geral, esta para todos os que não
estejam atingidos pelos tratados, firmados com o objetivo de evitar a dupla
tributação. Se isto fere a isonomia, a eventual inconstitucionalidade deve ser
discutida por parte de quem foi afetado pela lei nova que, ao permitir a
retenção pela fonte no Brasil, abriu caminho para a dupla oneração do prestador
de serviço com domicílio no exterior.
8. Os tratados referem-se a
"lucros", porém resta claro, a partir dos textos respectivos, que a
expressão remete, tecnicamente, ao conceito que, na legislação interna,
equivale a rendimento ou receita, tanto assim que as normas convencionais
estipulam que "No cálculo dos lucros de um estabelecimento permanente, é
permitido deduzir as despesas que tiverem sido feitas para a consecução dos
objetivos do estabelecimento permanente, incluindo as despesas de direção e os
encargos gerais de administração assim realizados".
9. Despesas e encargos são deduzidos da
receita ou rendimento a fim de permitir a apuração do lucro, logo o que os
tratados excluíram da tributação, no Estado pagador, que contratou a prestação
de serviços no exterior, não é tão-somente o lucro, até porque o respectivo
valor não poderia ser avaliado por quem simplesmente faz a remessa do pagamento
global. O que excluíram os tratados da tributação no Brasil, para evitar a
dupla incidência, foi o rendimento auferido com a prestação do serviço para
que, no Estado de prestação, ou seja, no exterior, seja promovida a sua
tributação, garantida ali, conforme a lei respectiva, a dedução de despesas e
encargos, revelando, portanto, que não existe espaço válido para a prevalência
da aplicação da lei interna, que prevê tributação, pela fonte pagadora no
Brasil, de pagamentos, com remessa de valores a prestadoras de serviços,
exclusivamente domiciliadas no exterior.
10. Apelação e remessa oficial
desprovidas.
Apesar de não ter sido a primeira decisão neste sentido (e
em sentido contrário ao ato declaratório COSIT 01 de 2000), a sua importância
deveu-se a repercussão que tomou na mídia especializada, sendo apontado como
indício de que estaria acontecendo uma reviravolta no posicionamento até então
adotado na maioria dos casos análogos.
Alguns meses após tal decisão, a questão foi apreciada pelo
STJ através de outro processo. Assim, através de decisão proferida no REsp
1.161.467/RS, o relator, ministro Castro Meira, decidiu pela prevalência da
aplicação do artigo 7º referente a lucro das empresas em face da aplicação da
legislação interna. A ementa desta decisão ficou assim proferida, in verbis:
TRIBUTÁRIO.
CONVENÇÕES INTERNACIONAIS CONTRA A BITRIBUTAÇÃO. BRASIL-ALEMANHA E
BRASIL-CANADÁ. ARTS. VII E XXI. RENDIMENTOS AUFERIDOS POR EMPRESAS ESTRANGEIRAS
PELA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À EMPRESA BRASILEIRA. PRETENSÃO DA FAZENDA NACIONAL
DE TRIBUTAR, NA FONTE, A REMESSA DE RENDIMENTOS. CONCEITO DE "LUCRO DA
EMPRESAESTRANGEIRA" NO ART. VII DAS DUAS CONVENÇÕES. EQUIVALÊNCIA A
"LUCRO OPERACIONAL". PREVALÊNCIA DAS CONVENÇÕES SOBRE O ART. 7º DA
LEI 9.779⁄99. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. ART. 98 DO CTN. CORRETA INTERPRETAÇÃO.
1.
A autora, ora recorrida, contratou empresas estrangeiras para a prestação de
serviços a serem realizados no exterior sem transferência de tecnologia. Em
face do que dispõe o art. VII das Convenções Brasil-Alemanha e Brasil-Canadá,
segundo o qual "os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são
tributáveis nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade em outro
Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado",
deixou de recolher o imposto de renda na fonte.
2.
Em razão do não recolhimento, foi autuada pela Receita Federal à consideração
de que a renda enviada ao exterior como contraprestação por serviços prestados
não se enquadra no conceito de "lucro da empresa estrangeira",
previsto no art. VII das duas Convenções, pois o lucro perfectibiliza-se,
apenas, ao fim do exercício financeiro, após as adições e deduções determinadas
pela legislação de regência. Assim, concluiu que a renda deveria ser tributada
no Brasil – o que impunha à tomadora dos serviços a sua retenção na fonte –, já
que se trataria de rendimento não expressamente mencionado nas duas Convenções,
nos termos do art. XXI, verbis: "Os rendimentos de um residente de um
Estado Contratante provenientes do outro Estado Contratante e não tratados nos
artigos precedentes da presente Convenção são tributáveis nesse outro
Estado".
3.
Segundo os arts. VII e XXI das Convenções contra a Bitributação celebrados
entre Brasil-Alemanha e Brasil-Canadá, os rendimentos não expressamente
mencionados na Convenção serão tributáveis no Estado de onde se originam. Já os
expressamente mencionados, dentre eles o "lucro da empresa
estrangeira", serão tributáveis no Estado de destino, onde domiciliado
aquele que recebe a renda.
4.
O termo "lucro da empresa estrangeira", contido no art. VII das duas
Convenções, não se limita ao "lucro real", do contrário, não haveria
materialidade possível sobre a qual incidir o dispositivo, porque todo e
qualquer pagamento ou remuneração remetido ao estrangeiro está – e estará sempre
– sujeito a adições e subtrações ao longo do exercício financeiro.
5.
A tributação do rendimento somente no Estado de destino permite que lá sejam
realizados os ajustes necessários à apuração do lucro efetivamente tributável.
Caso se admita a retenção antecipada – e portanto, definitiva – do tributo na
fonte pagadora, como pretende a Fazenda Nacional, serão inviáveis os referidos
ajustes, afastando-se a possibilidade de compensação se apurado lucro real
negativo no final do exercício financeiro.
6.
Portanto, "lucro da empresa estrangeira" deve ser interpretado não
como "lucro real", mas como "lucro operacional", previsto
nos arts. 6º, 11 e 12 do Decreto-lei n.º 1.598⁄77 como "o resultado das
atividades, principais ou acessórias, que constituam objeto da pessoa
jurídica", ai incluído, obviamente, o rendimento pago como contrapartida
de serviços prestados.
7.
A antinomia supostamente existente entre a norma da convenção e o direito
tributário interno resolve-se pela regra da especialidade, ainda que a normatização
interna seja posterior à internacional.
8.
O art. 98 do CTN deve ser interpretado à luz do princípio lex specialis
derrogat generalis, não havendo, propriamente, revogação ou derrogação da norma
interna pelo regramento internacional, mas apenas suspensão de eficácia que
atinge, tão só, as situações envolvendo os sujeitos e os elementos de
estraneidade descritos na norma da convenção.
9.
A norma interna perde a sua aplicabilidade naquele caso especifico, mas não
perde a sua existência ou validade em relação ao sistema normativo interno.
Ocorre uma "revogação funcional", na expressão cunhada por HELENO
TORRES, o que torna as normas internas relativamente inaplicáveis àquelas
situações previstas no tratado internacional, envolvendo determinadas pessoas,
situações e relações jurídicas específicas, mas não acarreta a revogação,
stricto sensu, da norma para as demais situações jurídicas a envolver elementos
não relacionadas aos Estados contratantes.
10.
No caso, o art. VII das Convenções Brasil-Alemanha e Brasil-Canadá deve
prevalecer sobre a regra inserta no art. 7º da Lei 9.779⁄99, já que a norma
internacional é especial e se aplica, exclusivamente, para evitar a
bitributação entre o Brasil e os dois outros países signatários. Às demais
relações jurídicas não abarcadas pelas Convenções, aplica-se, integralmente e
sem ressalvas, a norma interna, que determina a tributação pela fonte pagadora
a ser realizada no Brasil.
11.
Recurso especial não provido.
A decisão do STJ acabou consolidando a tendência de mudança
na jurisprudência dos tribunais federais. Apesar de não podermos falar em
jurisprudência sedimentada ou posicionamento da Corte Superior (mesmo porque
oriundo de apenas uma de suas turmas), a decisão supra definitivamente
representa uma boa notícia para os contribuintes e um indício de segurança
jurídica de respeito aos tratados internacionais por parte do Governo
Brasileiro3.
Os tratados internacionais, em nosso ordenamento jurídico,
são, segundo entendimento do STF, comparados às leis ordinárias. Entretanto,
cabe ressaltar que algumas peculiaridades se fazem presentes, tanto nos
tratados internacionais de maneira geral, como, no presente caso, quando
estamos analisando tratados internacionais que versam sobre matéria tributária.
O aparente conflito de leis, segundo normas básicas de
hermenêutica jurídica, é resolvido por três critérios, quais sejam: critério
hierárquico, critério temporal, e, critério especial.
Segundo o critério hierárquico, as leis que possuam grau
hierárquico superior a outras devem ser observadas em detrimento de disposições
que aparentemente conflitam com as primeiras. No caso de divergência sobre as
normas, deve ser dada a interpretação a norma hierarquicamente inferior que não
contradiz o que está disposto na norma superior. Assim, segundo tal critério,
são originados princípios como o da interpretação conforme a constituição. Isto
porque, sendo logicamente a constituição uma norma superior, a norma inferior
somente terá validade através de uma interpretação que esteja em conformidade
com o disposto no texto constitucional.
Já o critério temporal diz respeito a normas de mesmo grau
hierárquico, mas que foram emanadas em momentos diversos. Dessa forma, a norma
posterior revoga a norma anterior naquilo em que esta for contrária àquela. O
brocardo latim Lex posterior derogat legi priori advém de tal critério, e,
serve para dar continuidade ao direito que precisa estar em constante
atualização.
Por fim, existe ainda o critério especial ou da
especificidade, onde normas de mesmo nível hierárquico, mesmo que emanadas em
momentos distintos, e, a princípio contraditórias em determinadas questões, não
afasta a aplicação uma da outra, posto que, uma delas é mais específica do que
a outra.
Assim, segundo este critério, apesar de determinada lei
ordinária dispor de maneira geral sobre determinada exação fiscal no
ordenamento jurídico brasileiro, a norma prescrita no tratado internacional
para evitar a dupla tributação da renda terá prevalência e aplicação, no que
concerne aos Estados contratantes, uma vez que a norma prescrita no tratado é
uma regra específica que disciplina uma situação hipoteticamente prevista
somente para aqueles estados, diferentemente da lei ordinária que regula a
matéria de maneira geral.
É o que ocorre, por exemplo, quando o tratado celebrado
entre a França e o Brasil para evitar a dupla tributação da renda prevê que a
renda auferida em face de royalties deverá ser tributada com uma alíquota de
10%, fato este diverso da previsão da legislação tributária federal brasileira,
que prevê uma alíquota de 15%.
Da mesma forma, os tratados internacionais para evitar a
dupla tributação, na maioria dos casos quando celebrados através da convenção
modelo da OCDE, disciplina que os lucros das empresas serão tributados no país
onde a empresa é residente, salvo a situação onde estes lucros são provenientes
de um estabelecimento permanente desta empresa situado no outro Estado
contratante.
As autoridades tributárias brasileiras, para o caso em
apreço, tentam tributar a renda destas empresas, mesmo não possuindo
estabelecimento permanente no Brasil, nos casos em que exportam para o nosso
território serviços. Tal previsão é contida no ato declaratório do COSIT acima
mencionado.
Ora, a pretensão das autoridades tributárias brasileiras,
por inúmeras razões, é, logicamente, equivocada e descabida. Isto porque, não
pode a Administração Tributária brasileira, através de ato administrativo que
não possua força de lei, tentar criar regra nova. Ademais, tal regra é, de
maneira bastante clara, distinta daquela insculpida no tratado internacional, o
que acaba violando a mens legis deste, que, em última instância, visa à
desoneração da carga tributária na realização de negócios realizados entre os
Estados Soberanos signatários.
Ademais, cabe registrar que, com relação aos tratados
internacionais que versam sobre matéria tributária existe previsão no Código
Tributário Nacional no sentido de que, referidos tratados possuem grau
hierárquico em relação à legislação tributária interna.
Desse modo, é possível dispor que os tratados internacionais
tributários, quando em aparente conflito com a legislação doméstica tributária,
sobre esta prevalece tanto no que condiz ao critério da especialidade (este a
depender do disposto na norma interna), quanto no que condiz ao critério
hierárquico (em razão da disposição contida no artigo 98 do CTN - Código
Tributário Nacional).
É com bastante satisfação para aqueles que torcem pela
correta aplicação das normas legais a mudança jurisprudencial advinda nos
últimos tempos dos tribunais regionais federais e, recentemente, do Superior
Tribunal de Justiça que busca a correta interpretação dos dispositivos
infraconstitucionais existentes em nosso ordenamento.
Notadamente, é fácil observar que a jurisprudência pátria
esta caminhando para um entendimento mais correto e, em consonância com a
intenção dos tratados internacionais para evitar a dupla tributação da renda
assinados pelo Brasil.
No caso do artigo 7º, constante, via de regra, dos tratados
internacionais para se evitar a dupla tributação da renda celebrados pelo
Brasil, e, que dispõe sobre o lucro das empresas, a sua aplicação é medida
inerente ao princípio da boa-fé e da segurança jurídica.
Ademais, ao afastar a aplicação do referido artigo através
de ato infralegal, como é o caso do ato declaratório interpretativo COSIT 5/00,
a Secretaria da Receita Federal do Brasil está afrontando disposição de tratado
internacional que versa sobre questão tributária, e, dessa forma, tem
superioridade hierárquica devido ao disposto no artigo 98 do CTN, além de
afastar a aplicação de regra mais específica do que a regra geral do artigo
685, inciso II, do decreto 3.000/99 (Regulamento do Imposto de Renda).
Portanto, a posição que as cortes judiciais brasileiras
estão tomando sobre o assunto merece aplausos em virtude de demonstrarem uma
mudança de posicionamento para fins de afastar interpretação equivocada e
ofensiva a normas internacionais pactuadas com outros Estados Soberanos.
___________
1 Corresponde
a decisão proferida em Apelação / Reexame Necessário nº 2005.61.024.461-1
julgada no dia 26 de janeiro de 2012 e publicada no DJE do dia 06 de fevereiro
de 2012.
2 A redação
integral é a seguinte: I – As remessas decorrentes de contratos de prestação de
assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia
sujeitam-se à tributação de acordo com o art. 685, inciso II, alínea “a”, do
Decreto nº 3.000, de 1999. II – Nas Convenções para Eliminar a Dupla Tributação
da Renda das quais o Brasil é signatário, esses rendimentos classificam-se no
artigo Rendimentos não Expressamente Mencionados, e, conseqüentemente, são
tributados na forma do item I, o que se dará também na hipótese de a convenção
não contemplar esse artigo. III – Para fins do disposto no item I deste ato,
consideram-se contratos de prestação de assistência técnica e de serviços
técnicos sem transferência de tecnologia aqueles não sujeitos à averbação ou
registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI e Banco Central
do Brasil.
3 Vale
lembrar que o próprio Fisco Federal defende a aplicação de normas em tratados
internacionais, logicamente em situações que o favorecem. A exemplo disso
podemos citar a discussão da extensão da imunidade tributária das contribuições
sociais sobre as receitas de exportação. Um dos fundamentos para que tal
imunidade prevista no artigo 149 da Constituição Federal de 1988 não alcançasse
a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL – foi justamente a
possibilidade de ofender norma prevista em acordos internacionais celebrados
pelo Brasil com a OMC.
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* Paulo Antônio Machado da Silva Filho - advogado do
escritório Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados.
Migalhas, 12 de novembro de 2012.
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