É próprio da
linguagem que as palavras sejam potencialmente vagas e ambíguas[1]. Não é
diferente com o termo falência, que, em apertadíssima síntese, está a designar
tanto o meio de extinção de sociedades empresarias como o processo de execução
em concurso, o qual, para ser instaurado, exige uma sentença que reconheça a
existência de um devedor empresário, submetido à incidência da Lei 11.101/2005
e em estado de insolvência. Em suma, são pressupostos da falência: devedor
empresário; estado de insolvência; e sentença “declaratória”[2] da falência.
O estado de
insolvência não é propriamente de insolvência econômica, ou seja, situação de o
passivo superar o ativo. No Direito Falimentar brasileiro é insolvente aquele
que é impontual injustificadamente, frustra execução ou pratica ato de
falência, conforme previsto nos incisos I, II e III, do artigo 94, da Lei 11.101/2005.
Impontualidade
injustificada (inciso I), execução frustrada (inciso II) e ato de falência,
constituem-se em hipóteses que criam a presunção relativa de insolvência
econômica, cuja alternativa é a falência, eis que se presumem inviáveis os
empresários em tal situação. Relativa, pois, o depósito elisivo, previsto no
artigo 98, da Lei de Recuperação e Falências e a possibilidade de, no prazo da
contestação, ser requerida a recuperação judicial (conforme previsto no artigo
95), são situações que afastam a referida presunção.
É impontual
injustificadamente[3] o devedor empresário que “sem relevante razão de direito,
não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos
executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta)
salários-mínimos na data do pedido de falência” (inciso I, do artigo 94, da
LRF).
Mais a frente,
no próprio artigo 94, a
Lei Falimentar ainda prevê a necessidade de protesto específico para fins
falimentares: “§ 3º Na hipótese do inciso I do caput deste artigo, o pedido de
falência será instruído com os títulos executivos na forma do parágrafo único
do art. 9º desta Lei, acompanhados, em qualquer caso, dos respectivos
instrumentos de protesto para fim falimentar nos termos da legislação específica”.
A redação dos
dispositivos (inciso I e § 3º, ambos do caput, do artigo 94) é absolutamente
clara quanto à exigência de protesto e incisiva no sentido de que este seja
realizado de forma específica para fins falimentares, na medida em que dispõe
“acompanhados, em qualquer caso, dos respectivos instrumentos de protesto para
fim falimentar”.
Em qualquer
caso, ou seja, tratando-se de sentença, escritura pública, documento particular
firmado por duas testemunhas, títulos de crédito, etc., pois, repita-se, “em
qualquer caso” deverá haver o protesto específico para fim falimentar.
Apesar da
aparente clareza do dispositivo, alguns tribunais[4], entre eles o próprio
Superior Tribunal de Justiça[5], e parte importante da doutrina do direito
falimentar, têm entendido que basta o protesto cambial, caso o título que
basear o pedido falimentar já estiver protestado, dispensando, portanto, o
protesto específico que, em princípio, deveria ser feito “em qualquer caso”.
Poder-se-ia
sustentar que, tendo sido tirado o protesto cambial, seria uma exigência
meramente formal o protesto específico — que, segundo a Lei deveria ser
realizado “em qualquer caso”[6]. A mim tal assertiva não procede.
Primeiro, porque
não se pode conceber a “flexibilização” de requisitos para penalizar alguém.
Aliás, vale lembrar que para a sociedade empresária a falência é a mais severa
das sanções, pois equivale à pena de morte desta. A propósito, por que não
aplicar aqui, ainda que subsidiariamente, o princípio da preservação da
empresa? Por que se admitir, por vezes, uma aplicação tão condescendente deste
princípio na recuperação judicial e seu esquecimento no processo falimentar?
Ademais, é
direito do devedor ser apontado em protesto para fim falimentar. Neste caso,
querendo, poderá evitar o protesto com o pagamento ou com a sustação judicial
do mesmo. É evidente que ele, devedor empresário, igualmente poderia fazer isso
frente ao protesto por falta de pagamento, contudo, é também evidente a
gravidade do protesto falimentar, o que, por si só, já pode justificar uma ou
outra conduta acima (pagamento ou ajuizamento de demanda visando sustar o
protesto). Fora isso, o protesto falimentar dispõe de requisitos próprios, os
quais, igualmente, poderiam ser questionados judicialmente — em uma demanda anulatória
de protesto com requerimento liminar de sustação, por exemplo.
Apesar do
argumento acima, no sentido de que protesto falimentar seria “mera
formalidade”, penso que o entendimento que dispensa o protesto específico para
fim falimentar, na existência de protesto cambial, derive da aplicação
equivocada da jurisprudência consolidada à luz da antiga legislação falimentar
(Decreto-Lei 7.661/45).
Digo isso
porque, na Antiga Lei de Falência, previa-se que os títulos cujo protesto
(cambial) não era obrigatório, deveriam ser protestados para fins falimentares,
segundo o artigo 10, do Decreto-Lei 7.661/45: “Os títulos não sujeitos a
protesto obrigatório devem ser protestados, para o fim da presente lei, nos
cartórios de protesto de letras e títulos, onde haverá um livro especial para o
seu registro”. Ou seja, havendo protesto cambial, na vigência da lei revogada,
não se exigia o presto falimentar, por isso a jurisprudência ter firmado tal
entendimento.
Já o artigo 11,
do Decreto-Lei 7.661/45 previa que “para requerer a falência do devedor com
fundamento no artigo 1º, as pessoas mencionadas no artigo 9º devem instruir o
pedido com a prova da sua qualidade e com a certidão do protesto que
caracteriza a impontualidade do devedor”. Diferentemente da redação da lei em
vigor, insistente e propositalmente reproduzida ao longo do presente texto, que
prevê que o protesto será específico para fim falimentar “em qualquer caso”.
À bem da
verdade, tais argumentos sequer foram e estão sendo enfrentados pelos
precedentes que foram surgindo após a edição da Lei 11.101/2005, limitando-se
eles, em sua maioria, a reproduzir a jurisprudência consolidada quando o texto
normativo era diverso do atual.
Por isso, creio
que o protesto específico para fim falimentar deve existir “em qualquer caso”,
como expressamente previsto na Lei 11.101/2005, na hipótese de falência
decretada com base na impontualidade injustificada.
[1] Daí a
importância do contexto para a interpretação – não só do Direito, mas também do
Direito, conforme em texto anteriormente publicado em co-autoria com José
Miguel Garcia Medina.
[2] Declaratória
entre aspas, pois tal sentença tem natureza jurídica de sentença constitutiva,
eis que daquelas que cria, extingue e modifica relações jurídicas, v.g., cria a
massa falida, extingue a personalidade jurídica da sociedade empresária e faz
vencer antecipadamente as obrigações.
[3] A meu ver, só
há impontualidade injustificada, eis que, se for “justificada”, não se estará
diante de impontualidade, já que inexigível a obrigação. Assim, as hipóteses
previstas no artigo 96, da Lei 11.101/2005, não designam propriamente hipóteses
de impontualidade justificada, mas, sim, de situações onde é afastada a
impontualidade ou onde não é cabível o pedido falimentar (como na hipótese de a
atividade ter sido cessada há mais de dois anos – artigo 96, VIII, da Lei
11.101/2005).
[4] “FALÊNCIA -
IMPONTUALIDADE - ARTIGO 94, I DA LEI 1.101/05 - MONTANTE DA DÍVIDA - HIPÓTESE EM QUE O VALOR DO
INADIMPLEMENTO SUPERA 40 SALÁRIOS MÍNIMOS - INTERESSE PROCESSUAL RECONHECIDO -
DESNECESSIDADE DE PROTESTO ESPECIAL - DUPLICATAS PROTESTADAS -
IMPRESCINDIBILIDADE DA IDENTIFICAÇÃO DA PESSOA QUE RECEBEU A NOTIFICAÇÃO DO
PROTESTO, SOB PENA DE INVIABILIZAR O PEDIDO DE FALÊNCIA - SÚMULA 361 DO STJ -
EXTINÇÃO DO PROCESSO MANTIDA, MAS POR FUNDAMENTO DIVERSO - RECURSO DESPROVIDO.”
(TJSP, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Apelação
0003093-56.2010.8.26.0604, Relator Desembargador Elliot Akel, julgada em
17/05/2010)
[5] AGRAVO
REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. JUÍZO PRÉVIO DE ADMISSIBILIDADE. NÃO VINCULAÇÃO
DO STJ. FALÊNCIA. PROTESTO ESPECIAL. DESNECESSIDADE. RECEBIMENTO DA
NOTIFICAÇÃO. IDENTIFICAÇÃO. SÚMULA N. 361-STJ. REEXAME. SÚMULA N. 7-STJ. NÃO
PROVIMENTO. 1. O juízo prévio de admissibilidade do recurso especial não
vincula o Superior Tribunal de Justiça. 2. “É prescindível o protesto especial
para a formulação do pedido de falência.” (REsp 1052495/RS, Rel. Min. Massami
Uyeda, Terceira Turma, DJe 18/11/2009) 3. “A notificação do protesto, para
requerimento de falência da empresa devedora, exige a identificação da pessoa
que a recebeu.” Súmula n. 361 do STJ. Concluído pelo Tribunal local que houve a
devida identificação, o reexame da questão esbarra no enunciado n. 7, da Súmula
do STJ. Não se exige, ademais, que a pessoa identificada tenha poderes formais
para o recebimento da referida notificação. 4. Agravo regimental não provido.
(STJ, 4.º T., AgRg no REsp 1016893/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti,
julgado em 01/09/2011, DJe 08/09/2011)
[6] Sinto pela
repetição, mas faço isso porque, para mim, a clareza do dispositivo já seria
suficiente para justificar o que sustento no presente texto.
Henrique
Cavalheiro Ricci - advogado do escritório Medina & Guimarães Advogados
Associados e professor de Direito Falimentar na PUC-PR.
Fonte: Revista
Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2012
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