A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
reformou decisão da Justiça do Ceará que havia aplicado o Código de Defesa do
Consumidor (CDC) na solução de conflito entre uma clínica de tratamento de
câncer e uma representante comercial, distribuidora de equipamentos de
radioterapia. A clínica comprou um equipamento que acabou não sendo entregue,
porque a empresa estrangeira que faria o recondicionamento da máquina faliu.
Seguindo jurisprudência consolidada do STJ, a Turma
considerou que não há relação de consumo na compra de bens ou contratação de
serviços que se destinem a incrementar uma atividade negocial, a menos que se
verifique grande vulnerabilidade econômica ou técnica do adquirente – situação
que os ministros não reconheceram no caso julgado.
Mesmo afastando a relação de consumo, a Turma acompanhou o
voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, para determinar que a R.
Representação e Comércio de Eletrônicos Ltda. devolva ao C. R. I. de Oncologia
os valores pagos como adiantamento e que não tenham sido transferidos à empresa
estrangeira, além do valor recebido como comissão pelo negócio não concluído.
Acelerador linear de partículas
Em janeiro de 1999, a clínica de oncologia procurou a R. com
a intenção de adquirir um acelerador linear de partículas para tratar pacientes
com câncer. O equipamento seria recondicionado pela J. C., da qual a R. era
representante comercial no Brasil. O negócio foi fechado e o pagamento foi
ajustado em US$ 320 mil, sendo US$ 200 mil adiantados e o restante na entrega
do equipamento.
Do valor combinado como adiantamento, foram pagos US$ 160
mil à R. e US$ 40 mil diretamente à empresa norte-americana. Porém, dois anos e
três meses após o fechamento do negócio, a representante informou que a
mercadoria não poderia ser entregue, pois a empresa norte-americana que
recondicionaria o aparelho havia falido.
Por essa razão, sugeriu alternativas para viabilizar o
adimplemento do contrato. Uma delas seria a aquisição de nova máquina para
aproveitamento de peças, mas com custos mais elevados. A clínica não aceitou as
propostas apresentadas e entrou com ação contra a representante comercial,
pedindo restituição do pagamento e reparação de danos.
Em primeira instância, a R. foi condenada a restituir o
valor adiantado pela venda não finalizada do aparelho. O pedido de indenização
por lucros cessantes, porém, foi negado.
As partes recorreram, mas o Tribunal de Justiça do Ceará
(TJCE) manteve a sentença de primeiro grau. Inconformada, a R. recorreu ao STJ
sustentando violação dos artigos 2° e 17º do CDC (Lei 8.078/90), pois ao
comprar o aparelho médico para tratamento de pessoas com câncer em sua clínica,
a C. R. I. não poderia ser considerada consumidora por equiparação.
Empresas de porte
Quanto à aplicação do CDC ao caso, a ministra Nancy Andrighi
destacou que as duas Turmas do STJ especializadas em direito privado estão
adotando o entendimento firmado na Segunda Seção, no sentido de que “a
aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica,
com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se
reputa como relação de consumo e, sim, como atividade de consumo
intermediária”.
Porém, observou a relatora, esse entendimento tem sido
abrandado “em situações nas quais fique evidenciada a existência de clara
vulnerabilidade da pessoa física ou jurídica adquirente de produto ou serviço,
mesmo que, do ponto de vista técnico, ela não possa ser considerada
destinatária final”.
Como exemplos, citou o caso da costureira que compra máquina
de bordar para utilizar em seu ofício e do caminhoneiro que adquire veículo
para trabalhar, e até mesmo do pequeno agricultor que compra sementes.
Para a ministra, no entanto, as informações trazidas pelo
processo mostram que tanto a clínica quanto a representante comercial são
empresas de porte considerável, com atuação destacada em seus segmentos de
mercado, o que afasta a hipótese de vulnerabilidade econômica.
“Do ponto de vista técnico, a hipossuficiência igualmente
não se verifica. Ambas as empresas atuam no mercado de tratamento do câncer,
tendo condições de conhecer com profundidade os produtos utilizados nessa
atividade”, acrescentou a ministra.
Responsabilidade do representante
No recurso especial, a Radiaton alegou também que o TJCE, ao
considerá-la responsável pelo negócio não concluído, teria violado o artigo 1º
da Lei 4.886/65, que regula a representação comercial. Sobre esse ponto, a
relatora afirmou que o negócio foi fechado antes da vigência do novo Código
Civil, e portanto o caso deve ser resolvido exclusivamente à luz da Lei 4.886.
Com base nessa legislação, Nancy Andrighi afirmou que “o
representante comercial age por conta e risco do representado, não figurando,
pessoalmente, como vendedor nos negócios que intermedeia”. Assim, segundo a
relatora, “não se pode imputar a ele a responsabilidade pela não conclusão da
venda decorrente da falência da sociedade a quem representa”.
De acordo com a ministra, ainda que a R. não seja a
vendedora da mercadoria oferecida pela empresa norte-americana, ela presta um
serviço pelo qual é devidamente remunerada. A exemplo do que faz um corretor,
aproxima as partes e intermedeia a venda, fazendo jus à comissão devida apenas
quando há conclusão do negócio.
“A entrega da coisa, portanto, que não foi possível por fato
alheio, tanto à vontade da Crio como da R., deve produzir os respectivos efeitos
para ambas as partes”, acrescentou.
Devolução
Por essa razão, não sendo possível a devolução total do
valor pago pela clínica oncológica pela aquisição da máquina não entregue pela
sociedade estrangeira falida, é possível determinar que a representação
comercial devolva sua comissão, já que o negócio não foi realizado, e restitua,
ainda, o montante que não foi repassado à empresa falida.
“Vale dizer: todo o montante do preço pago que tiver
integrado o patrimônio da R. deve ser devolvido”, concluiu a ministra,
esclarecendo que eventuais remessas à firma estrangeira devem ser provadas pelo
registro de transferência bancária no Banco Central ou por anotações legalmente
lançadas na contabilidade.
Quanto aos valores que tenham sido efetivamente entregues à
J. C., a ministra disse que só poderão ser recuperados com a habilitação da
credora na falência da empresa ou por outra via admitida na legislação
estrangeira.
Processo: REsp 1173060
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
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