Qualquer
consultor em matéria tributária, entre dezembro de 2002 e outubro de 2009,
quando indagado por clientes se uma pessoa jurídica, no período base de sua
extinção, em virtude de cisão, fusão ou incorporação, poderia compensar
integralmente o saldo de prejuízos fiscais acumulados, isto é, sem observar o
limite de 30% de redução do lucro líquido, teria respondido afirmativamente à
questão e classificado como muito remota a probabilidade de perda em eventual
discussão administrativa.
O consultor
tributário fundamentaria sua resposta na jurisprudência consolidada da Câmara
Superior de Recursos Fiscais (CSRF), inaugurada pelo Acórdão CSRF/01-04.258, de
1º de dezembro de 2002, da relatoria do conselheiro Celso Alves Feitosa, assim
ementado:
“Compensação
prejuízo fiscal e base negativa — No caso de incorporação, uma vez vedada a
transferência de saldos negativos, não há impedimento legal para estabelecer
limitação, diante do encerramento da empresa incorporada.”
Na sequência de
referido julgado, em que ficaram vencidos apenas dois conselheiros[1], foi
proferido, por unanimidade, o Acórdão CSRF/01-05.100, de 19 de outubro de 2004,
da relatoria do conselheiro José Henrique Longo, com a seguinte ementa que, de
tão categórica, é quase uma súmula:
“IRPJ —
Compensação de prejuízo — Limite de 30% — Empresa incorporada — À empresa
extinta por incorporação não se aplica o limite de 30% do lucro líquido na
compensação do prejuízo fiscal.”
O voto do
relator é elucidativo quanto aos fundamentos jurídicos e ao grau de
consolidação da linha de orientação em causa no âmbito do Conselho de
Contribuintes:
“Em face da
incorporação e da impossibilidade de compensar posteriormente o saldo de
prejuízo na incorporadora, não havia outra opção senão a de compensar
integralmente seu prejuízo.
Esse raciocínio
já está pacificado neste Conselho de Contribuintes. A norma (Lei 9.095/95, art.
15), ao impor a “trava” na compensação, não pretendeu tolher o direito do
contribuinte de não recolher IRPJ sobre a recuperação do capital,
correspondente ao lucro após prejuízo. Pretendeu sim uma arrecadação mínima, se
apurado lucro líquido, com a limitação de utilização do prejuízo acumulado. Em
contrapartida, extinguiu o prazo de aproveitamento do prejuízo (de 04 anos),
para que o contribuinte pudesse compensar integralmente seu saldo de prejuízo
fiscal, ainda que em muitos anos.
Desse modo, e
considerando que à empresa incorporadora é vedado o aproveitamento do saldo de
prejuízo fiscal da empresa incorporada (Decreto-lei 2.341/87, arts. 32 e 33),
deixa de existir a premissa de inexistência de limitação de aproveitamento do
prejuízo com os lucros futuros, o que compromete a legitimidade da trava do
prejuízo.
A Câmara
Superior de Recursos Fiscais pronunciou-se a respeito dessa matéria no acórdão
CSRF/01-04.258, no sentido de permitir o aproveitamento integral do prejuízo
fiscal, na hipótese tal qual a sob exame — último período base por
incorporação.”
Sete anos
depois, no entanto, o consultor tributário e seus clientes são golpeados por
uma súbita e imprevisível mudança da linha de orientação da CSRF: o que era
pacífico tornou-se tormentoso; o risco de perda, que era remoto, passou a ser
provável; naquilo em que se confiava não se pode mais acreditar; da
tranquilidade passou-se ao temor.
A reviravolta
ocorreu no dia 2 de outubro de 2009, quando a1ª Turma da CSRF, pelo voto de qualidade,
proferiu o Acórdão 9101-00.401 (apenas formalizado em 17 de agosto de 2010),
decidindo “(...) que o limite de 30% para compensação de prejuízos de períodos
anteriores também é aplicável nos ajustes ao lucro real do balanço de
encerramento das atividades da empresa (....)”.
A modificação da
linha orientação que se tornara reiterada, pacífica, podendo-se chamar de
tradicional, não se nos afigura razoável do ponto de vista jurídico nem, muito
menos, desejável do ponto de vista institucional.
Não se nos
afigura razoável do ponto de vista jurídico porque a linha de orientação
tradicionalmente adotada pela CSRF se baseava em uma interpretação equilibrada
e ponderada das normas referentes à compensação de prejuízos fiscais.
Com efeito, como
se lê da percuciente síntese formulada no voto do conselheiro José Henrique
Longo, a linha de orientação tradicional assenta no entendimento segundo o qual
a norma especial do artigo 33 do Decreto-lei 2.341/87 — que excepciona os
saldos de prejuízos fiscais acumulados da sucessão a título universal que é
característica própria das operações de fusão, cisão e incorporação de
sociedades (arts. 227, 228 e 229, § 1º da Lei n.º 6.404/76) — é incompatível
com as finalidades do regime geral previsto nas Leis 8.981/95 e 9.065/95: a
garantia de uma arrecadação mínima pela aplicação do limite de 30%, sem retirar
do contribuinte o direito de compensar integralmente seus prejuízos ao longo
dos anos.[2]
Entendeu-se que
a aplicação cumulativa das normas geral (limite de 30%) e especial
(inexistência de sucessão no saldo de prejuízos fiscais em operações de
reorganização societária) aos casos de extinção da pessoa jurídica
corresponderia à desconsideração definitiva — e já não mais temporária — da
parcela dos prejuízos não compensada (70%) pela impossibilidade de sua
compensação futura.
A interpretação
tradicional da CSRF harmonizava as normas em questão ao definir que não poderia
subsistir, simultaneamente, uma dupla limitação: a limitação quantitativa de
30% ficaria afastada naqueles casos em que fosse aplicável a limitação contida
no artigo 33 do Decreto-lei 2.341/87.
Sem pretende
desmerecer os argumentos jurídicos em sentido contrário, não se pode perder de
vista que aqueles que sustentavam a linha de orientação tradicional foram sempre
tidos como mais robustos e acolhidos, se não pela unanimidade, por uma maioria
expressiva dos membros do Conselho de Contribuintes, tanto que vinham
prevalecendo até o malfadado julgamento da CSRF de 2 de outubro de 2009.
A mudança de
orientação, da forma como se deu, sete anos depois e pelo recurso ao voto de
qualidade, não é desejável do ponto de vista institucional. Abalada fica a
confiança que os particulares depositaram na CSRF/Conselho de Contribuintes
(atual Carf) que, sem qualquer sombra de dúvidas, é um órgão de Estado
pluralista e democrático, respeitado e admirado pelos operadores do Direito
Tributário.
Ora, nunca é
demais lembrar que a CSRF é o órgão máximo da administração judicante, que
uniformiza a jurisprudência e dita a interpretação da lei fiscal. A CSRF é
maior, mas muito maior, que as individualidades que a compõe e não pode mudar
sua jurisprudência ao sabor do vento que sopra, para atender desígnios sabe-se
lá de onde, aproveitando-se de um quórum de oportunidade.
Sua interpretação
remansosa e pacífica da lei tributária, indiscutivelmente pública e seguida
pelos particulares, representa uma prática reiterada das autoridades
administrativas. Assim sendo, a súbita reversão da orientação tradicional — no
mínimo — não poderá importar na aplicação de penalidades, na imposição de juros
moratórios, nem na atualização do valor monetário da base de cálculo do
tributo, ex vi do parágrafo único do artigo 100 do Código Tributário Nacional
(CTN).
Com efeito, foi
exatamente para proteger o contribuinte da aplicação, de surpresa, de novas
medidas que o CTN veio estabelecer no parágrafo único do artigo 100 que “a
observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidade,
a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de
cálculo do tributo”.
A dispensa da
exigência de penalidade justifica-se facilmente pelo fato de o contribuinte ter
cumprido a lei tal como interpretada pelo órgão máximo da Administração
judicante. A dispensa da exigência dos juros de mora reside também na
circunstância de o contribuinte ter cumprido a sua obrigação nos precisos
termos da mesma lei, pelo que de mora não se pode falar. Enfim, a não exigência
de atualização de valor monetário da base de cálculo funda-se nos princípios fundamentais
do Estado de Direito, entre os quais o da proteção da confiança e da
previsibilidade da ação estatal, contrários a pretensões patrimoniais exigidas
de surpresa.
O alcance do
parágrafo único do artigo 100 do CTN foi objeto de aprofundada análise no
clássico Direito Tributário Brasileiro de Aliomar Baleeiro, revisto e
complementado por Misabel Abreu Derzi:
“São vários os
dispositivos do Código que consagram a irretroatividade dos atos
administrativos favoráveis ao contribuinte (arts. 100, parágrafo único, art.
105, art. 146 e art. 156, IX). Um deles, o art. 100, a rigor, admite a
retroação, mas atenua-lhe os efeitos. (....)
“O parágrafo
único do artigo 100 fixa a norma segundo a qual a observância pelos
contribuintes dos atos normativos referidos poderá beneficiá-los (jamais criar
para eles encargos novos). Na hipótese de a Administração ter errado na
interpretação da lei ou mudado de orientação, substituindo-a por outra, os
contribuintes ficam obrigados, por força do princípio da legalidade (obrigação
ex lege), ao pagamento do tributo, mas sem os consectários dos juros, das
multas e da correção monetária.”[3]
Sacha Calmon
Navarro Coelho faz entroncar a regra do parágrafo único do artigo 100 do CTN no
princípio da proteção da confiança dos atos administrativos em matéria fiscal.
“Para proteger
os contribuintes da inconstância das orientações baixadas pela Administração
fiscal, mediante os variados instrumentos de que dispõe, foi redigido, com
grande sabedoria, o art. 100 do CTN e seu importantíssimo parágrafo único, de
incomensurável serventia na clínica fiscal.
“Noutras
palavras, se o contribuinte age de conformidade com a orientação do Fisco,
acatando os atos administrativos normativos mencionados no art. 100, pouco
importando a nomenclatura oficial, fica totalmente livre de multas, juros e
correção monetária. (...).” [4]
Desejamos
sinceramente que a CSRF corrija o rumo e retorne à posição tradicional nos
próximos julgamentos sobre a matéria, fazendo do Acórdão 9101-00.401 um
incidente isolado, um erro do passado. É chegada a hora de recuperar a
confiança dos contribuintes na estabilidade das suas decisões.
Mas, se assim
não o fizer, que, ao menos, reconheça aos contribuintes que, de boa-fé,
acreditaram nas suas decisões sobre a matéria o direito à aplicação da regra do
parágrafo único do artigo 100 do CTN, cancelando as exigências de multa, juros
e correção monetária.
Isso é o mínimo
que se espera de um órgão de justiça fiscal.
[1] Como se lê
do Acórdão: “(...) Por maioria de votos, NEGAR provimento ao recurso, nos
termos do relatório e voto que passam a integrar o presente julgado. Vencidos
os Conselheiros Cândido Rodrigues Neuber e Verinaldo Henrique da Silva”.
[2] Este
racional está estampado na Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 998/95,
reedição das Medidas Provisórias 947/95 e 972/95, posteriormente convertida na
Lei nº 9.065/95: “Arts 15 e 16 do Projeto: decorrem de Emenda do relator, para
restabelecer o direito à compensação de prejuízos, embora com as limitações
impostas pela Medida Provisória nº 812/94 (Lei nº 8.981/95). Ocorre hoje
vacatio legis em relação à matéria. A limitação de 30% garante uma parcela
expressiva da arrecadação, sem retirar do contribuinte o direito de compensar,
até integralmente, num mesmo ato, se essa compensação não ultrapassar o valor
do resultado positivo”.
[3] Cfr. 11ª
ed., Rio de Janeiro, 2003, p. __.
[4] Cfr. Curso
de Direito Tributário Brasileiro (2ª ed.), Rio de Janeiro 1999, 543.
Roberto Duque
Estrada - advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório
Xavier Bragança Advogados.
Revista
Consultor Jurídico, 21 de novembro de 2012.
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