Em meus livros
Uma breve introdução ao direito e Uma breve teoria do poder (Editora Revista
dos Tribunais), procurei focar o direito nos Estados democráticos, como uma
forma de o povo dizer o que gostaria que o Estado fizesse a favor da sociedade,
tanto em relação às liberdades individuais quanto ao equilíbrio social,
propiciando, também, o desenvolvimento econômico à luz da iniciativa privada.
Quanto aos direitos individuais, o ordenamento estabelece as regras destinadas
a controlar o exercício do poder por aqueles que o detêm que, mais do que
representar a sociedade, tendem sempre a considerar que possuem um direito
superior ao dos comuns mortais e, por serem "autoridades", são
cidadãos de primeira categoria.
Já no livro O
estado de direito e o direito do Estado (Editora Lex/Magister), procurei
mostrar a absoluta inconfiabilidade do homem no poder e a fragilidade das
sociedades em enfrentar aqueles que as governam, pois estamos ainda nos
primeiros passos da verdadeira democracia, no Brasil e no mundo.
A Declaração
Universal dos Direitos Humanos foi uma conquista decorrente, de um lado, dos
crimes da Segunda Guerra Mundial e, de outro, da percepção jurídica além do
direito escrito, que permitiu a condenação de criminosos nazistas, sem que
houvesse norma internacional sancionatória, visto que a declaração da
Organização da Nações Unidas (ONU) só surgiu em 10 de dezembro de 1948,
enquanto o primeiro e mais importante dos julgamentos daquela Corte especial é
de 1º de outubro de 1946.
O grande dilema
da atualidade reside em saber quais os limites que balizam o poder da sociedade
de intervir na formulação de políticas do Estado, do Estado em relação à
sociedade, assim como os limites do coletivo em relação ao individual, cujos
direitos devem ser respeitados numa democracia, no legítimo exercício da
liberdade de ser, de expressão e de convivência.
John Rawls, no
seu famoso Uma teoria da justiça (Martins Editora), declara que o equilíbrio
para que sociedade e Estado convivam, em uma democracia respeitadora de
direitos individuais e da liberdade de ser, pensar e agir, decorre das
denominadas teorias "não abrangentes", isto é, daquelas teorias que
terminam por coexistir com outras, sem a busca de imposição.
Considera nada
mais prejudicial a uma teoria da Justiça e a um Estado democrático do que as
teorias abrangentes, aquelas absolutistas que impõem ao cidadão uma determinada
maneira de pensar e que terminam por gerar ditaduras, como se viu com os
comunistas de Stalin, os nazistas de Hitler, os fascistas de Mussolini ou os
socialistas de Fidel Castro. Estas quatro ditaduras do século 20 mataram a
individualidade e impuseram uma maneira equivocada e coletiva de agir.
Na célebre série
Star Trek, o gênio cinematográfico Gene Roddenberry criou os Borgs, um povo que
pretendia impor a sua maneira coletiva de agir aos outros. Eram os Borgs
controlados por uma rainha que centralizava o domínio completo de um povo meio
máquina, meio ser humano e que só raciocinava a partir do coletivo.
Sociedade
Não tinham nomes, mas números. E todos
pensavam da mesma forma. E os povos que conquistavam tinham de ser
"assimilados", isto é, passavam por um processo de reeducação e
robotização, senão seriam "eliminados". Roddenberry pretendeu, na sua
série, criticar as ditaduras ideológicas, que excluem a liberdade de pensar,
condenando aqueles que ousam discordar.
À evidência, a
evolução política do ser humano leva-nos a outra dimensão: a da busca dos
ideais democráticos, em que as liberdades individuais, o direito de
representação e de eleger seus representantes terminam por gerar a
possibilidade do povo de interferir no comando que deseja para suas aspirações.
Neste
particular, o ceticismo de Thomas Hobbes (Leviatã, ícone Editora), não
compartilhado por John Locke (Dois tratados sobre o governo, Martins Editora),
que via a possibilidade de uma participação real do povo na condução dos
governantes, desemboca em
Charles Louis de Montesquieu, que, conhecendo a natureza
humana no poder, termina por sistematizar a divisão dos poderes (Do espírito
das leis, Editora Edipro). Na época, criticado, porque diziam que o poder
dividido não é poder, contrabalançou com a assertiva de que o homem, no poder,
jamais é confiável, razão pela qual havia necessidade de o poder controlar o
poder. O direito de legislar, dado a totalidade da nação, seria exercido pelo
Parlamento (onde se encontram representadas tanto a situação quanto a
oposição); o de governar, executando as leis, seria exercitado pelo Poder
Executivo, constituído pela maioria da nação (a oposição não participa do
Executivo); e o poder de julgar, outorgado a um poder técnico, que não é
político.
Em outras
palavras, Montesquieu percebe, comparticular acuidade, que a identificação do
homem com o poder torna-o um representante inconfiável. E que deve mais ser
controlado por outros poderes do que pelo próprio povo que, mesmo nas
democracias, tem instrumental de controle reduzido, sobre o poder ser
manipulado facilmente, por aquilo que Rawls denominou de o "véu de
ignorância", pertinente à grande maioria da sociedade, que não tem uma
visão de conjunto do Estado.
Neste quadro, é
de compreender, como procurei mostrar no livro Uma breve teoria do poder, que
são as oposições fortes que garantem a democracia. Oposições fracas levam os
detentores do poder a enfraquecer as instituições para seu domínio, como
ocorreu na Venezuela, na Bolívia e no Equador, em que os maiores instrumentos
de controle e repressão são dados aos presidentes da República, como o de
derrubar o Congresso, convocar plebiscitos etc.
O amadurecimento
social, todavia, com uma presença cada vez maior da imprensa como fiscalizadora
dos atos de governo, facilita a tomada de consciência pelo povo de suas
responsabilidades e direitos perante os governantes, com o que seus integrantes
podem exercer melhor a cidadania, sempre com o risco de serem facilmente
manipulados pela própria imprensa, que, como ironizava Mark Twain (pseudônimo
de Samuel Langhorne Clernens, que é autor de As aventuras de Tom Sawyer), tem a
tendência de separar o joio do trigo e publicar o joio.
Com todas as
deficiências, preconceitos e equívocos, a imprensa exerce, contudo, um papel
profilático no desventrar a podridão dos porões governamentais, em todo o
mundo, o que é bom para fortalecimento da democracia.
Não haverá,
todavia, jamais uma democracia forte se, paralelamente aos direitos da
coletividade como um todo, não houver respeito aos direitos individuais, que
não devem"ser superados pelos direitos coletivos", como apregoam
diversas correntes socialistas ou comunistas, mas devem "conviver em
condições de igualdade com aquele complexo de direitos que cabe à pessoa
exercer independentemente da autorização do Estado ou da sociedade". Não
sem razão, o constituinte ressalva os direitos individuais como cláusulas
pétreas, imodificáveis, mas não os coletivos ou sociais, estando assim redigido
o § 4º do artigo 60 da Constituição:
"ART. 60.
(...)
§ 4º NÃO SERÁ
OBJETO DE DELIBERAÇÃO A PROPOSTA DE EMENDA TENDENTE A ABOLIR:
I - A FORMA
FEDERATIVA DE ESTADO;
II - O VOTO
DIRETO, SECRETO, UNIVERSAL E PERIÓDICO;
III - A
SEPARAÇÃO DOS PODERES;
IV - OS DIREITOS
E GARANTIAS INDIVIDUAIS".
É que há
direitos naturais que o Estado não deve criar, como procurei esclarecer no
livro Uma breve introdução ao direito, mas apenas reconhecer como é, por
exemplo, o direito à vida. O Estado não o cria. Pode criar a melhor forma de
governo (parlamentarismo ou presidencialismo), mas não pode criar o direito à
vida de quem quer que seja, pois este direito lhe é inato.
René Cassin,
relator principal da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de
dezembro de 1948, declarou que os direitos, nela contemplados, não foram ali
incluídos por terem sido considerados bons, no correr do tempo, "mas
porque eram inerentes e próprios do ser humano, que com eles nasciam".
O grande
desafio, portanto, do século 21 em que vivemos, como diz Norberto Bobbio em A
era dos direitos (Editora Campus), não é declarar quais são os direitos, o que
já fizemos no século 20, mas "assegurá-los".
Ora, nessa busca
de um equilíbrio entre o direito do Estado, o direito da sociedade e o direito
do indivíduo - todos os três devendo ser respeitados, numa autêntica democracia
- reside o grande desafio do século 21, para ti.
"A imprensa
tem a tendência de separar o joio do trigo e publicar o joio"
Mark Twain
todas as nações
e todos os sistemas jurídicos dominantes.
Não deve um
Estado, nem a sociedade, dizer o que é bom para o exercício da individualidade
de cada um (ser), da sua maneira de expressar (pensar) e de como deve agir
(família, trabalho e relações sociais).
Deve o Estado,
enquanto seus governos são representantes do povo, dizer quais as obrigações do
cidadão para com a pátria e de que forma exercer os direitos próprios de uma
democracia (vida, segurança, propriedade e liberdade, art. 5º da Constituição
Federal), na busca de uma igualdade assimétrica. Não deve, todavia, dizer como
educar os filhos - a não ser na grade curricular das escolas -, ou seja, não
deve interferir nos valores que os pais pretendem que seus filhos tenham,
inclusive de natureza religiosa.
É que o Estado
laico não é o Estado ateu, mas o Estado em que o governo não é dirigido pela
religião. De resto, é de lembrar que a religião católica não é religião oficial
de nenhum Estado, embora o anglicanismo seja a religião oficial da Inglaterra,
o judaísmo de Israel, o islamismo dos Estados do Oriente Próximo e o
protestantismo dos Estados nórdicos. O Estado laico não deve, todavia,
desconhecer a opinião de seu povo e da maioria que o constitui, pois, caso
contrário, terminaria por excluir todos os que acreditam em Deus, como ocorreu
com os países comunistas, em suas constituições, antes da queda do muro de
Berlim.
Enfim, para
concluir, o correto equilíbrio entre o direito do Estado, da sociedade e dos
indivíduos é que constitui a verdadeira democracia, em que a política do Estado
deve respeitar o pensamento da sociedade, o direito do indivíduo de ser, pensar
e agir, desde que não ponha em risco as instituições, nem agrida direitos de
terceiros.
Autor: Ives
Gandra da Silva Martins
Professor
Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O Estado de
São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME, Superior
de Guerra - ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal-1ª Região.
Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres
(Peru) e Vasili Goldis (Romênia). Doutor Honoris Causa das Universidades de
Craiova (Romênia) e da PUC-Paraná, e Catedrático da Universidade do Minho
(Portugal).
Fonte: Apet.
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