A pouca jurisprudência sobre a possibilidade de
redirecionamento de dívidas tributárias a outras empresas do mesmo grupo
econômico, aliada à insistência do fisco em usar a solução como forma de
garantir créditos tributários, tem empurrado os juízes a manejar a ferramenta
cada qual à sua maneira. No Superior Tribunal de Justiça, onde a Justiça
Federal tem suas referências, há apenas decisões que tratam de casos envolvendo
ilícitos, como fraudes, em que o redirecionamento é permitido. Nada há julgado,
porém, sobre contribuintes que simplesmente não pagaram seus débitos.
A avaliação é da advogada e professora de Direito Tributário
da USP, PUC e IBET Maria Rita Ferragut. Ela falou, na quinta-feira (22/11), a
um público formado principalmente por juízes, mas também por procuradores da
Fazenda e advogados no IV Congresso Ajufesp de Execuções Fiscais, organizado
pela Associação de Juízes Federais dos Estados de São Paulo e Mato Grosso do
Sul na sede da Advocacia-Geral da União em São Paulo. A professora e livre-docente
pela USP tem dois livros escritos que abordam aspectos do assunto: Presunções
no Direito Tributário e Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002.
Segundo Maria Rita, o problema começa com a definição. A
única descrição legal para grupo econômico é a da Instrução Normativa 971/2009,
da Receita Federal, que diz ficar caracterizada a interdependência quando “duas
ou mais empresas estiverem sob a direção, o controle ou a administração de uma
delas, compondo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade
econômica”.
“Se não houver vínculo de subordinação, não é possível
aplicar o conceito”, afirmou a advogada. É o caso, disse, de conglomerados
bancários, em que uma empresa trabalha com varejo, outra com leasing e outra
ainda como corretora, todas sob a mesma marca. “Cada uma tem créditos e dívidas
próprios.”
Foi o que entendeu, por exemplo, o Superior Tribunal de
Justiça ao julgar, em 2009, a solidariedade do Banco Safra S/A em relação a
dívidas de ISS do Safra Leasing S/A Arrendamento Mercantil. “É tranquilo nesta
corte o entendimento segundo o qual não caracteriza a solidariedade passiva em
execução fiscal o simples fato de duas empresas pertencerem ao mesmo grupo
econômico”, disse a ministra Eliana Calmon ao relatar o Recurso Especial
1.079.203, interposto pelo fisco da cidade de Itajaí.
“Para se caracterizar responsabilidade solidária em matéria
tributária entre duas empresas pertencentes ao mesmo conglomerado financeiro, é
imprescindível que ambas realizem conjuntamente a situação configuradora do
fato gerador, sendo irrelevante a mera participação no resultado dos eventuais
lucros auferidos pela outra empresa coligada ou do mesmo grupo econômico”,
arrematou a 1ª Turma do STJ ao julgar o Recurso Especial 834.044, também
envolvendo uma instituição financeira — o Banco Santander Banespa — e uma
prefeitura cobrando ISS — a do município de São Leopoldo (RS).
A exceção fica para os casos de ilícitos ou confusão
patrimonial, como exemplificou a professora: “Quando há duas empresas, uma delas
no regime de apuração do Lucro Real e outra no Lucro Presumido, e as despesas
são lançadas todas como apenas daquela no Lucro Real, enquanto a receita como
se fosse toda da que está no Lucro Presumido, há uma vantagem tributária
indevida”.
Isso não quer dizer, segundo Maria Rita, que o chamado cost
sharing, quando despesas correntes são aproveitadas ao máximo para beneficiar
diversas empresas do grupo, seja proibido. “Posso usar um mesmo diretor
financeiro em mais de uma empresa, mas não posso atribuir a só uma empresa o
salário de todos os diretores”, explicou.
É o Código Tributário Nacional e o Código Civil que servem
como fundamentação para o entendimento. O primeiro, em seu artigo 124, diz que
“são solidariamente obrigadas as pessoas que tenham interesse comum na situação
que constitua o fato gerador” e “as pessoas expressamente designadas por lei”.
Já o Código Civil prescreve em seu artigo 50 que, em caso de abuso de
personalidade jurídica, “pode o juiz decidir (…) que os efeitos de certas e determinadas
relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos
administradores ou sócios”.
Para tributaristas, no entanto, permitir que dívidas
tributárias atinjam os sócios é dizer, na prática, que a sociedade não existe
de fato. “Discordo desse entendimento. Quando a desconsideração da
personalidade jurídica é determinada pela Justiça, ela só vale para aquele caso
concreto em que não é possível distinguir o patrimônio de cada um”, opina a
professora.
Prazos paralelos
O início da contagem do prazo dentro do qual é possível
redirecionar a dívida também divide a jurisprudência. Há duas correntes: uma
delas entende que o prazo é de cinco anos contados a partir da citação da
pessoa jurídica devedora. A outra, mais conservadora, diz que os cinco anos
devem ser contados a partir da identificação da fraude, o que estende o período
que o fisco tem para cobrar. No Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com
sede em São Paulo, a maioria das turmas de Direito Público adota a primeira
hipótese.
No entanto, em julgado polêmico de 2010, a 2ª Turma do STJ —
em acórdão com nada menos que cinco votos declarados juntados à decisão final,
dois deles vencidos — fixou que o prazo prescricional é punição ao credor que
fica inerte. No entanto, o fisco não pode ser punido por prestigiar o princípio
da boa-fé processual ao permitir ao devedor esgotar os meios processuais ao seu
alcance para se defender, como em adesões a parcelamentos ou oferecimento de
Embargos que recebam efeito suspensivo.
“Se não ocorrida a prescrição, será ilegítimo entender
prescrito o prazo para redirecionamento, sob pena de criar a aberrante
construção jurídica segundo a qual o crédito tributário estará,
simultaneamente, prescrito (para redirecionamento contra o sócio-gerente) e não
prescrito (para cobrança do devedor principal, em virtude da pendência de
quitação no parcelamento ou de julgamento dos Embargos do Devedor)”, disse o
ministro Herman Benjamin ao abrir a divergência vencedora no Recurso Especial
1.095.687.
Desvio presumido
Pedra no sapato das fiscalizações financeiras, a comprovação
das ilicitudes pode ser feita, na opinição de Maria Rita, por meio de presunção
com o uso de provas indiciárias, e não apenas de provas diretas, que
dificilmente são colhidas nesses casos. “Provas diretas também se presumem, já
que o real jamais pode ser alcançado de forma objetiva”, disse ela, repetindo
conceito defendido em sua tese de mestrado na PUC-SP. “Uma perícia, que é uma
prova direta, por exemplo, pode ser feita ilicitamente em prol de uma das partes.”
De acordo com a advogada, são exemplos de provas relevantes
a confusão patrimonial entre empresas; quadros de sócios e administradores
semelhantes ou com parentes; sedes no mesmo prédio; mesmo PABX; mesmos
advogados; e o fechamento e a abertura de empresas em datas próximas. O
esvaziamento do patrimônio, com queda de faturamento, enquanto outras empresas
do grupo com objetos sociais semelhantes ou complementares aumentam suas
receitas, também torna a situação suspeita.
No entanto, ela ressalvou que, nessas situações, é o
contexto que vai validar ou não as provas. “É preciso que haja comprovação do
indício; inexistência de prova contrária; que todos os indícios vão para o
mesmo lado e que deles não se possa deduzir mais de um fato", diz.
Ela contou exemplo no qual uma empresa foi autuada pela
Previdência Social por falta de recolhimento de contribuições sobre verbas
pagas a representantes comerciais, tidos por empregados. “Eles não eram
funcionários, só tinham o plano de saúde pago pela companhia”, conta. Segundo
ela, esse é o tipo de prova que vai em uma direção enquanto todas as outras vão
em sentido oposto.
Maria Rita comentou também as formas pelas quais o fisco tem
chegado às provas. Segundo ela, as reclamações trabalhistas têm sido uma mina
de ouro para os auditores. “Eles procuram nos depoimentos dos ex-empregados
menções a administradores e sócios que não aparecem formalmente nos quadros da
empresa, mas que se mantêm à frente do negócio”, disse. “Vi até mesmo um
auditor criar uma conta fictícia de e-mail para pedir informações à empresa
investigada como comprador, para comprovar o subfaturamento.”
Saída mais fácil
Embora possa lançar mão de estratégias ousadas, segundo a
especialista, o fisco é obrigado a seguir regras processuais. Um delas é que o
nome das empresas autuadas conste na Certidão de Dívida Ativa, que dá à
administração pública o direito líquido e certo de executar o débito na
Justiça. “É necessária a citação para compor o polo passivo”, disse.
Após a oposição de Embargos à Execução, segundo ela, ainda é
possível o redirecionamento da cobrança para outras empresas do grupo, desde
que haja nova abertura de prazo para apresentação de provas e possibilidade de
ampla defesa.
Outra recomendação da professora é que a mera inexistência de
bens não justifique o redirecionamento. Nesse caso, porém, um julgado de 1995
do STJ contraria o entendimento. No Recurso Especial 7.397, a 2ª Turma, em
acórdão relatado pelo ministro Ari Pargendler, autorizou o redirecionamento de
Execução Fiscal contra os sócios de uma empresa pelo simples fato de não haver
bens da pessoa jurídica capazes de satisfazer o crédito tributário. “No
entanto, essa decisão é muito antiga”, ressalvou Maria Rita.
Prática comum dos procuradores da Fazenda, o ajuizamento de
Medidas Cautelares Fiscais perante o juízo para garantir a indisponibilidade de
bens dos devedores paralelamente às Execuções Fiscais foi criticado pela
professora. “O uso de ação cautelar fiscal só é recomendado se houver indícios
de dilapidação do patromônio”, asseverou. Segundo ela, em todos os casos em que
o débito é superior a 30% do patrimônio da empresa devedora, o fisco tem
entrado com a medida.
A Lei 8.397/1992, alterada pela Lei 9.532/1997, autoriza o
caminho. A indisponibilidade ainda pode ser estendida aos administradores por
força do artigo 4º, parágrafo 2º, da Lei 8.397.
Em 1998, ao julgar a matéria, o STJ ventilou a possibilidade
do uso de Medida Cautelar Fiscal para redirecionar dívidas do grupo econômico
para sócios e administradores.
“Não deve prevalecer o disposto no artigo 4º, parágrafo 2º,
da Lei 8.397/1992, ao estabelecer que, na concessão de Medida Cautelar Fiscal,
‘a indisponibilidade patrimonial poderá ser estendida em relação aos bens
adquiridos a qualquer título do requerido ou daqueles que estejam ou tenham
estado na função de administrado’”, iniciou o ministro Franciulli Neto — que já
morreu — ao relatar o Recurso Especial 197.278. Mas completou, abrindo a
possibilidade: “Em se tratando de responsabilidade subjetiva, é mister que lhe
seja imputada a autoria do ato ilegal, o que se mostra inviável quando o sócio
sequer era administrador da sociedade à época da ocorrência do fato gerador do
débito tributário pendente de pagamento.”
Alessandro Cristo - editor da revista Consultor Jurídico
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 25 de novembro de 2012.
0 comentários:
Postar um comentário