O sistema constitucional tributário disposto na Constituição
Federal de 1988 tem características bastante peculiares, que exigem
protagonismo excepcional da jurisdição constitucional.
Com efeito, em nossa tradição, já a partir da Constituição
de 1934, o texto constitucional atribui privativamente a cada ente da
Federação, União, estados e municípios, tributos específicos e estabelece
regras estritas para a criação de impostos novos.
Essa foi a primeira vez, em todo o mundo, que uma
Constituição estruturou sistema tributário rígido e inflexível, limitando a
margem de discrição e liberdade do legislador. A Constituição de 1934
estipulava a forma, o conteúdo, a qualidade e a quantidade de tributos que
poderiam ser arrecadados pela União, pelos estados e municípios de maneira
exaustiva e abrangente[i].
A Constituição de 1937, por sua vez, manteve o sistema
constitucional tributário rígido e inflexível, delegou aos estados a
competência residual para criar novos impostos e vedou a bitributação (artigo
24, CF/1937). Na CF/1937, surgem também as competências tributárias negativas,
tal como a imunidade recíproca (artigo 32, alínea “c”, CF/1937).
Na mesma linha, seguiram os textos constitucionais de 1946
(artigos 15; 19; 21; 29; e 30 da CF/1946); de 1967 (artigos 18; 19; 22; 23; 24;
e 25 da CF/1967); e de 1969 (artigos 18; 21; 22; 23; e 24 da CF/1969), que
sempre estipularam de forma enumerativa as competências tributárias dos entes
políticos, discriminando os impostos e esgotando as formas e os meios em que os
entes políticos poderiam instituir tributos.
A CF/1988 é herdeira, portanto, da longa tradição brasileira
de sistemas constitucionais tributários rígidos, que especificam todos os
tributos que podem ser exigidos e identificam cada imposto que União, estados e
municípios podem instituir. Nesse sentido, a CF/1988 elenca rol taxativo de
impostos (artigos 145, inciso I; 153; 154; 155; e 156 da CF/1988); taxas
(artigo 145, inciso II, da CF/1988); contribuições de melhoria (artigo 145,
inciso III, da CF/1988); contribuições (artigos 149; 149-A; e 195 da CF/1988) e
empréstimos compulsórios (artigo 148 da CF/1988). A Carta Magna estipula regras
estritas de competência residual para instituição de impostos e contribuições
não nominadas expressamente no seu texto (artigos 154, inciso I, e 195,
parágrafo 4º, da CF/1988).
Recente pesquisa destacou esse caráter singular do sistema
tributário brasileiro. Com efeito, enquanto alguns países limitam-se a
expressar, em variados graus, o princípio da legalidade tributária — como
Angola; Bélgica; Bulgária; Canadá; China; Cingapura; Colômbia; Estados Unidos;
Grécia; Índia; Indonésia; Islândia; Israel; Japão; Peru; Portugal; Suíça;
Tunísia; Turquia; e Venezuela —, outros garantem a legalidade apenas de forma
genérica ou implícita — como África do Sul; Áustria; Chile; Dinamarca; Equador;
Espanha; Holanda; Itália; México; Noruega; Suécia; e Ucrânia. Outros países sequer
asseguram a legalidade tributária, como Argentina; Bolívia; Costa Rica; e
Uruguai[ii].
De fato, nenhum outro país possui rígido, inflexível e
exaustivo sistema constitucional de competências tributárias como o Brasil.
Assim, entre as diversas características do sistema
tributário na CF/1988, ganha relevo seu caráterrígido, porquanto só pode
ser modificado por meio de emenda constitucional, cujo processo legislativo é
mais solene e dificultoso do que o de edição de leis ordinárias. A rigidez do
sistema constitucional tributário é reconhecida como princípio constitucional
implícito que repercute diretamente sobre as competências tributárias tão
amplamente detalhadas na CF/1988, não tendo o legislador ordinário liberdade
para “desenhar qualquer traço fundamental” [iii].
Ademais, é importante salientar que a competência tributária
fixada na CF/1988 é exaustiva, como bem destacou Ataliba, ao
afirmar que o constituinte de 1946 criou sistema “completo, fechado e
harmônico, que limita e ordena estritamente, não só cada poder tributante como
— consequência lógica — toda atividade tributária, globalmente considerada” [iv]. Isto é, não há competência tributária
fora dos termos definidos ou do rol fechado explicitado na CF/1988, inexistindo
liberdade discricionária para o legislador ordinário.
Evidentemente, a detalhada repartição de competências
tributárias prestigia o federalismo, especialmente considerando o processo
centrífugo de formação do federalismo no Brasil, atendendo a antigo anseio de
descentralização de recursos da União para os estados e municípios, e de
recursos dos estados para os municípios[v]. Em grande parte, esse anseio é atendido
no Brasil por meio da repartição tanto de competências quanto de receitas dos
impostos[vi]
Na realidade, a CF/1988 predetermina o conteúdo material e
define as hipóteses de incidência, estabelecendo cada espécie tributária e
limitando, tanto formalmente quanto materialmente, os tributos que podem ser
instituídos[vii].
Além disso, a CF/1988 não foi detalhista apenas com relação
às competências tributárias, mas também no pertinente a normas protetivas que
moldam o poder de tributar e amparam direitos e garantias dos contribuintes,
prevendo extenso rol de limitações constitucionais ao poder de tributar. Por
isso, permanece válida ainda hoje a frase de Aliomar Baleeiro de que “nenhuma
Constituição excede a brasileira, a partir da redação de 1946, pelo zelo com
que reduziu a disposições jurídicas aqueles princípios tributários [limitações
constitucionais ao poder de tributar]” [viii] .
Essas singularidades do sistema constitucional brasileiro
procuram eliminar a dupla tributação interna e proteger eficientemente o
contribuinte. Elas têm como efeito, ainda, transformar o Supremo Tribunal
Federal, guardião das disposições constitucionais, no garante de quase todo o
sistema tributário.
Não é por mera coincidência, então, que o primeiro caso em
que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade de
dispositivo constitucional tenha sido em matéria tributária. No julgamento da
ADI 939/DF, de relatoria do ministro Sydney Sanches, publicado em 17 de
dezembro de 1993, reconheceu-se a natureza de cláusulas pétreas dos direitos e
garantias fundamentais do contribuinte, inclusive quanto ao princípio da
anterioridade e às imunidades, principalmente no que se refere à imunidade
recíproca.
Por outro lado, tampouco é fruto do acaso que a mesma emenda
constitucional, no caso a Emenda Constitucional 3/1993, que fez reforma
tributária, também tenha instituído instrumentos de fortalecimento da
jurisdição constitucional, como a ação declaratória de constitucionalidade e
expansão do efeito vinculante.
Na realidade, o rígido e analítico sistema constitucional
tributário impõe não só a edição de emenda constitucional para qualquer reforma
substancial, como determina formas céleres e eficazes de pacificação de
controvérsias tributárias pelo STF.
O STF torna-se, portanto, o arrimo, ao mesmo tempo, de
intricadas questões federativas (a exemplo da guerra fiscal) e de garantias
fundamentais do contribuinte (como a segurança jurídica do contribuinte, v.g.
RE 587.008/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, DJ 6.5.2011), como também de
detalhes da mecânica do ICMS e do IPI. É corriqueiro que importantes questões
quanto aos sujeitos passivos, base material de incidência e de alíquotas,
necessitem de definição do STF para sua pacificação.
Nesse sentido, é grande a responsabilidade da corte de
manter hígida e coerente a aplicação do sistema constitucional tributário, a
fim de evitar a tardia declaração de inconstitucionalidade de tributos. Por
exemplo, o reconhecimento da inconstitucionalidade de algumas questões relacionadas
ao Funrural só ocorreu quase 20 anos de sua instituição e cobrança (RE
363852/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, DJ 23.4.2010 e RE 596177/RS, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJ 29.8.2011). Além disso, permanecem
indefinidas questões relevantes, como a incidência do ICMS na base de cálculo
da Cofins, ainda pendente de apreciação na ADC 18, de relatoria do ministro
Celso de Mello e no RE 240.785/MG, de relatoria do ministro Marco Aurélio,
Pleno, que cuida de ação declaratória ajuizada em 1992, a qual subiu como
recurso extraordinário ao STF em 1998 e ainda não teve seu julgamento
concluído.
Nesse âmbito, a demora na solução gera novas dificuldades
que a repetição de indébito de tributos inconstitucionais e a modulação de
efeitos das respectivas declarações de inconstitucionalidades não têm resolvido
adequadamente.
Novos instrumentos, como a repercussão geral e a expansão do
controle abstrato de constitucionalidade, têm permitido que a jurisdição
constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal dê respostas cada vez
mais adequadas para as inúmeras controvérsias tributárias de natureza
constitucional.
No entanto, é importante ressaltar que o próprio dever de
harmonização das normas constitucionais torne difícil para o STF abdicar de
questões tributárias pontuais. Exemplo marcante desse dilema foi a questão da
alíquota de imposto de renda aplicável aos rendimentos pagos acumuladamente.
Num primeiro momento, o STF entendeu como ausente a repercussão geral da
questão nos autos do RE 592.211/RJ, de relatoria do ministro Menezes Direito,
julgada pelo Pleno, com decisão publicada no dia 21 de novembro de 2008.
Posteriormente, no entanto, o TRF da 4ª região entendeu inconstitucional a
aplicação da alíquota integral do IR sobre os rendimentos acumulados, causando
disparidade com os contribuintes submetidos às demais regiões do país. Daí que,
também não por mera coincidência, o STF tenha pela primeira reconsiderado sua
decisão para reconhecer a repercussão geral da questão
constitucional nos autos do RE 614.232-AgR-QO-RG, de relatoria da ministra
Ellen Gracie, julgado pelo Pleno, com decisão publicada em 4 de março de 2011,
por unanimidade.
Em síntese, o rígido e analítico sistema constitucional
tributário impõe grande responsabilidade à jurisdição constitucional em geral e
ao STF, em particular para controlar cada passo do legislador federal, estadual
e municipal em matéria tributária. Todavia, esse sistema demanda também
instrumentos que possibilitem ao STF respostas rápidas e eficazes para
pacificar as diversas controvérsias constitucionais tributárias.
[i] ATALIBA, Geraldo. Sistema
Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1968, p. 61.
[ii] TÔRRES, Heleno Taveira et
alli. “Sistema Tributário e Direitos Fundamentais no Constitucionalismo
Comparado” in TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Sistema Tributário,
legalidade e direito comparado: entre forma e substância. Belo Horizonte:
Fórum, 2010. p. 21-76.
[iii] ATALIBA, Geraldo. Sistema
Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1968, p. 20.
[iv] ATALIBA, Geraldo. Sistema
Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1968, p. 27.
[v] LEAL, Victor Nunes. Coronelismo,
enxada e voto: o município e o regime representativo do Brasil.3ª Ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. .
[vi] OLIVEIRA, Fabrício Augusto de.
“A Evolução da Estrutura Tributária e do Fisco Brasileiro: 1889-2009” in Texto
para Discussão do IPEA, n. 1469, Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), jan. 2010. p. 1-57. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1469.pdf.
Acesso em: jun. 2012.
[vii] ÁVILA, Humberto. Sistema
Constitucional Tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 110.
[viii] BALEEIRO, Aliomar. Limitações
Constitucionais ao Poder de Tributar. Rio de Janeiro: Forense, 1974,
p. 2.
Luciano
Felício Fuck - professor no Instituto Brasiliense de Direito Público,
doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito pela
Ludwig-Maximilians-Universität de Munique e membro do conselho editorial do
Observatório da Jurisdição Constitucional.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 8 de dezembro
de 2012
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