Espécie de multa coercitiva oriunda do Direito francês, as
astreintes constituem, de forma bem objetiva, medida cominatória imposta pelo
Estado-juiz contra o devedor de obrigação de fazer, não fazer, ou dar coisa,
cuja incidência se dá, via de regra, por dia de descumprimento.
Dessa forma e não obstante a existência das normas legais
que lhe dão o devido suporte, estabelecidas, sobretudo, pelo artigo 461 do CPC,
fato é que, na prática, a imposição das astreintes acabou, ao longo do tempo,
gerando uma infinidade de situações não previstas em lei, as quais, por sua
vez, obrigaram o Judiciário, em especial, o STJ, a se posicionar diante das
inúmeras discussões daí decorrentes.
Com isso, ou seja, mediante a consolidação da
jurisprudência, o STJ já definiu, em suma, que as astreintes (i) devem incidir
a partir da ciência do obrigado e da sua recalcitrância (REsp 699.495); (ii)
ser computadas após a intimação do devedor, por intermédio do seu patrono,
acerca da execução provisória e do decurso do prazo fixado para o cumprimento
voluntário da obrigação (EAg 857.758); (iii) podem ser revogadas, hipótese em
que seus valores deverão, inclusive, ser devolvidos por quem os recebeu (AgRg
no Ag 1.383.367); ou, até mesmo, alteradas - quando insuficientes ou excessivas
– mesmo após o trânsito em julgado da respectiva decisão de imposição (AgRg no
AREsp 14.395).
Faltava definir quem teria legitimidade para receber os
valores atinentes às próprias astreintes, isto é, se o seu credor ou o Estado,
ou ainda, se ambos, dado que, em última análise, o desrespeito à decisão
estatal é que serve de fato gerador para a sua incidência, tendo a Corte
Especial pacificado o entendimento de que tais valores devem ser revertido,
exclusivamente, ao seu credor, ou seja, a quem, efetivamente, sofreu os danos
decorrentes do desrespeito à decisão judicial impositiva da aludida multa.
Mais recentemente, o mesmo Tribunal estabeleceu que, em
casos de inscrição indevida nos cadastros de maus pagadores, é do credor – e
não do devedor – o ônus de providenciar a baixa relativa a essa inscrição.
Todavia, em que pese o acerto da jurisprudência construída
até aqui, a realidade demonstra que a aplicação das astreintes ainda reserva
aos operadores do Direito inúmeras distorções, que, vez por outra, acabam mesmo
por desnaturar o próprio instituto da multa sob comento.
Muito embora, dentre as situações mais corriqueiras,
verifiquem-se hipóteses em que é mais vantajoso ao devedor resistir ao
cumprimento da obrigação e brigar pelo não pagamento das respectivas
astreintes, os casos que mais saltam aos olhos e que, via de consequência,
reclamam uma resposta mais rápida e contundente do Poder Judiciário são aqueles
em que o credor, propositalmente, mantém-se inerte, com o único objetivo de ver
crescer o valor da respectiva multa.
Isso, além de promover o seu enriquecimento sem causa,
conduz, nas palavras do E. Ministro Salomão, uma disfunção processual, que,
ombreando a chamada indústria do dano moral, fomenta um novo tipo de indústria,
agora nomeado por ele de "indústria das astreintes".
Nesse cenário e visando coibir esse tipo de distorção ou de
abuso (propriamente), o STJ, mais uma vez, fez-se presente, brindando o
jurisdicionado com o julgamento do REsp 758.518, no qual, sob a advertência de
que a boa-fé objetiva afigura-se standard ético-jurídico a ser seguido pelos
contratantes em todas as fases processuais, conclui que os litigantes têm o
dever não só de observá-lo, mas, mais do que isso, de atuar de modo a não
infringir os preceitos éticos insertos no ordenamento jurídico, o que, via
obliqua, compreende o dever de mitigar o próprio prejuízo, que, no direito
alienígena, corresponde ao duty to mitigate the loss.
Noutros termos, significa dizer que não basta ao credor das
astreintes, por exemplo, quedar-se inerte, enquanto faz uma espécie de poupança
diária, mas, ao contrário disso, deve ele tomar as medidas necessárias e
possíveis para que o dano gerado à outra parte não seja ainda mais agravado
pela sua inércia, pois, nas palavras do relator, desembargador Vasco Della
Giustina (convocado do TJ/RS), isso imporá gravame desnecessário e evitável ao
patrimônio da outra (parte), circunstância que infringe os deveres de
cooperação e lealdade.
Não bastasse a violação ao referido princípio da boa-fé
objetiva, é certo que esse tipo de situação revela-se ainda mais aviltante
quando a inércia do credor pega carona na ineficiência do Poder Judiciário em
fazer com que suas decisões sejam observadas e, efetivamente, cumpridas, ou
seja, quando, por exemplo, o acúmulo das astreintes em favor do seu credor se
dá em razão da demora dos órgãos cadastrais efetivarem o cancelamento de uma
inscrição indevida, ou ainda, do departamento de trânsito efetuar uma alteração
de cadastro veicular qualquer: em ambos os casos, note-se, bastaria a expedição
de uma determinação judicial, seja por ofício ou mandado de intimação, para que
os seus destinatários dessem cumprimento às respectivas determinações
judiciais.
Sucede que, na maioria das vezes, ou o Poder Judiciário
deixa o cumprimento da obrigação da qual decorrem as astreintes a cargo
exclusivo de uma das partes, que, portanto, torna-se refém de toda sorte de
percalços e rotinas burocráticas de estilo, ou, o que é pior, ao determinar o
cumprimento da referida obrigação, não toma as cautelas necessárias para evitar
que o credor das astreintes seja ainda mais beneficiado pela desídia e
leniência com que alguns órgãos (públicos ou não) vêm tratando o cumprimento de
determinadas decisões judiciais.
Assim, seria de extrema relevância e bastante salutar para o
funcionamento do nosso ordenamento jurídico como um todo que o STJ fizesse uma
nova leitura do disposto no artigo 461 do CPC e, nesse caminhar, estipulasse,
de uma vez por todas, que, nos casos em que a obrigação puder ser cumprida em
virtude de simples ordem judicial, caberá ao juízo determiná-la e executá-la,
não havendo, pois, o que se exigir da parte contra a qual foi proferida a
decisão exequenda, a não ser, é claro, que mantenha um comportamento pautado
pela boa-fé objetiva.
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* Gilberto da Silva Costa Filho é advogado do escritório AIDAR
SBZ Advogados.
Fonte: Migalhas
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