O programa de leniência no âmbito do Conselho Administrativo
de Defesa Econômica (Cade) não é uma invenção nacional, pelo contrário, é a
tradução de leniency agreement, como é chamado o instituto nos Estados Unidos.
Praticamente todos os países com legislação de defesa da concorrência possuem
um programa de leniência, ainda que com outros nomes, como programa de
clemência em Portugal, programma di clemenza na Itália e conditional immunity
na Comunidade Europeia.
Trata-se de importante mecanismo no combate aos cartéis,
pois os indícios da infração anticoncorrencial são levados à autoridade,
poupando significativos esforços e recursos públicos. A lógica, portanto, é
inversa; não é a autoridade que “vai atrás” do cartel, é o cartel que é
“levado” à autoridade.
Além disso, o instituto da leniência tende a desestabilizar
um cartel, pois apenas o primeiro a delatar a prática (no caso do Brasil) tem
direito aos benefícios estipulados no programa. Ou seja, qualquer
desentendimento ou suspeitas dentre os membros do cartel traz a incerteza de
que alguém poderá delatar a prática, sendo isso um forte incentivo para que
aquele que se sinta ameaçado se antecipe e procure a autoridade de defesa da
concorrência.
O programa de leniência foi instituído no Brasil no final do
ano 2000 e o primeiro acordo de leniência foi firmado aos 8 de outubro de 2003,
data que foi estabelecido o “dia nacional de combate aos cartéis”. Desde então
diversos casos de cartéis, nacionais e internacionais, foram delatados e
condenados. Alguns, talvez se não fosse o programa de leniência, estariam até
hoje impunes, desvirtuando a concorrência e lesando a sociedade.
Atualmente o programa de leniência está previsto na Lei de
Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011), pelo qual por intermédio da sua Superintendência-Geral
o Cade poderá celebrar acordo de leniência com pessoas físicas e jurídicas que
forem autoras de infração à ordem econômica, com a extinção da ação punitiva da
administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade, desde que
haja colaboração efetiva com as investigações e o processo administrativo e que
da colaboração resulte a identificação dos demais envolvidos na conduta
infrativa e a obtenção de informações e documentos comprobatórios da conduta
delatada.
Para que o acordo de leniência produza efeitos às empresas
do mesmo grupo, de fato ou de direito, e aos seus dirigentes, administradores e
empregados envolvidos na infração, todos devem firmar em conjunto o acordo.
A proposta do acordo de leniência é sigilosa, salvo no
interesse das investigações e do processo administrativo. Outrossim, a proposta
não importa em confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento de
ilicitude da conduta analisada, caso seja rejeitada, e da mesma não se fará
qualquer divulgação.
O sigilo, além de preservar o leniente, ajuda nas
investigações em sua fase inicial, mas também resguarda informações de pessoas
jurídicas e, sobretudo, a privacidade de pessoas físicas, que sofrem buscas e
apreensões conduzidas pelo Cade com autorização do Poder Judiciário. É durante
essa fase do sigilo que o Cade realiza a triagem do material e informações
apreendidos, separando aquilo que se relaciona com as investigações e, portanto
são de interesse público, e aquilo que nada diz respeito ao processo.
Por fim, o programa de leniência dispõe que nos crimes
contra a ordem econômica e nos demais crimes diretamente relacionados à prática
de cartel, tais como fraude em licitação pública, a celebração de acordo de
leniência suspende o curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da
denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. Mais ainda, uma vez
cumprido o acordo de leniência, extingue-se automaticamente a punibilidade de
tais crimes.
Contudo, o leniente não está eximido de se processado e condenado,
reparar os danos causados à outrem pelo ilícito que cometeu. Ainda que seja
algo muito incipiente no Brasil, sobretudo pela dificuldade em algumas
situações para se calcular o valor do dano causado, são justamente esses danos
que servem também de incentivo para a celebração de acordos de leniência nos
Estados Unidos. Lá, quando da celebração do acordo já se estipula na
conditional leniency letter os valores indenizáveis, que poderão ser pagos
voluntariamente (single damages) ou por meio das ações civis (treble damages),
de modo que o leniente consiga se estruturar e ao mesmo tempo a leniência
produza um efeito indenizatório.
O programa de leniência, portanto, é um forte instrumento no
combate aos cartéis. A preservação e o aprimoramento desse instituto é
fundamental para a defesa da concorrência no Brasil e a respeitabilidade do
País no cenário internacional.
Vicente Bagnoli é professor da Faculdade de Direito da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, presidente da Comissão de Estudos da
Concorrência e Regulação Econômica da OAB-SP e conselheiro do IBRAC.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2013
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