Uma recente decisão do ministro Celso de Mello, do STF,
reacendeu a discussão sobre a inconstitucionalidade da exigência de certidão
negativas de débitos para a prática de atos necessários ao desenvolvimento das
atividades empresariais.
No caso em questão, o ministro Celso de Mello deferiu
liminar para que a União Federal, por intermédio do ministério do
Desenvolvimento Agrário, abstenha-se de exigir que uma determinada empresa
apresente certidão negativa de débito trabalhista em chamadas públicas.
Indo um pouco mais além nessa discussão, entendemos que o
Poder Público também não pode exigir certidão negativa de débitos, seja lá qual
for, como condição para uma empresa, por exemplo, registrar uma alteração no
seu contrato social, obter um regime especial de recolhimento de imposto, ou
até mesmo alienar bem imóvel.
Esse entendimento ganhou força no julgamento das ações
diretas de inconstitucionalidade (ADIns) 173 e 394-1, nas quais o STF analisou
a constitucionalidade da lei Federal 7.711, de 22 de dezembro de 1988, que
obrigava as empresas a comprovarem a quitação de créditos tributários como
condição para a prática de diversos atos, dentre os quais o registro de
contrato relativo a alienação de bens. A referida norma previa o seguinte:
"Art. 1º Sem prejuízo do disposto em leis especiais, a
quitação de créditos tributários exigíveis, que tenham por objeto tributos e
penalidades pecuniárias, bem como contribuições federais e outras imposições
pecuniárias compulsórias, será comprovada nas seguintes hipóteses:
I - transferência de domicílio para o exterior;
II - habilitação e licitação promovida por órgão da
administração federal direta, indireta ou fundacional ou por entidade
controlada direta ou indiretamente pela União;
III - registro ou arquivamento de contrato social, alteração
contratual e distrato social perante o registro público competente, exceto
quando praticado por microempresa, conforme definida na legislação de regência;
IV - quando o valor da operação for igual ou superior ao
equivalente a 5.000 (cinco mil) obrigações do Tesouro Nacional - OTNs:
a) registro de contrato ou outros documentos em Cartórios de
Registro de Títulos e Documentos;
b) registro em Cartório de Registro de Imóveis;
c) operação de empréstimo e de financiamento junto a
instituição financeira, exceto quando destinada a saldar dívidas para com as
Fazendas Nacional, Estaduais ou Municipais.
§ 1º Nos casos das alíneas a e b do inciso IV, a exigência
deste artigo é aplicável às partes intervenientes.
§ 2º Para os fins de que trata este artigo, a Secretaria da
Receita Federal, segundo normas a serem dispostas em Regulamento, remeterá
periodicamente aos órgãos ou entidades sob a responsabilidade das quais se
realizarem os atos mencionados nos incisos III e IV relação dos contribuintes
com débitos que se tornarem definitivos na instância administrativa, procedendo
às competentes exclusões, nos casos de quitação ou garantia da dívida.
§ 3º A prova de quitação prevista neste artigo será feita
por meio de certidão ou outro documento hábil, emitido pelo órgão
competente."
No referido julgamento, o STF declarou a
inconstitucionalidade dos incisos I, III e IV, e dos parágrafos 1º a 3º, todos
do art. 1º. Segundo o STF, as exigências contidas no art. 1º da lei Federal
7.711/88 caracterizam "sanções políticas", isto é, restrições ou
proibições impostas ao sujeito passivo como modo indireto de coerção ao
pagamento de tributo.
De fato, não faz sentido impedir a prática de um negócio
lícito sob o pretexto de que a sociedade envolvida na operação é devedora do
fisco. Ora, se a empresa possui débito fiscal, deve o Poder Público se valer
dos diversos mecanismos que a legislação lhe oferece para cobrá-la ou
constranger o seu patrimônio para garantir o recebimento da dívida, dentre os
quais a lei de execuções fiscais, e não se valer de artifícios que
indiretamente forçam o contribuinte a pagar sua dívida fiscal, usurpando deste
o direito de discuti-la.
Esse tipo de restrição também ofende o princípio
constitucional do devido processo legal, pois impede a empresa de exercer, na
sua plenitude, os seus direitos de defesa e contraditório.
Mas apesar do posicionamento do STF, o Poder Público
continua a exigir a prova da regularidade fiscal para as situações previstas no
art. 1º da lei Federal 7.711/88, a pretexto dessas exigências estarem contidas
em outras normas legais. Ocorre que essas outras normas, como o art. 47 da lei
Federal 8.212, de 24 de julho de 1991, são da mesma forma inconstitucionais,
pois também impõem sanções políticas aos contribuintes, a fim de obrigá-los a
regularizar seus débitos fiscais.
O art. 47 da lei Federal 8.212/91 prevê, por exemplo, a
exigência da apresentação da certidão negativa de débito previdenciário,
fornecida pela RF do Brasil, para a alienação ou oneração, a qualquer título,
de bem imóvel. Porém, na esteira do que decidiu o STF no julgamento das ADIns
173 e 394-1, que tratava de norma semelhante, a exigência do art. 47 da lei
Federal 8.212/91 é inconstitucional.
A compra e venda de imóvel, à vista de toda a formalidade e
publicidade que a cerca, não pode ser considerada presumidamente ilegal ou
prejudicial aos interesses fazendários pelo simples motivo de não estar acompanhada
de prova da regularidade fiscal do vendedor.
Não ter a certidão à disposição não significa
necessariamente estado de insolvência ou coisa que o valha. A sua não emissão
pode ser ocasionada por inúmeras razões, sendo desde um mero erro em uma declaração
qualquer, até o não pagamento de um valor indevido. É sabido que muitas vezes
as certidões só não são emitidas por conta da extrema burocracia e morosidade
do Poder Público – aliás, veja nesse ponto que o Poder Público acaba se
beneficiando da própria ineficiência, o que é totalmente inadmissível.
Se o objetivo da lei Federal 8.212/91 é evitar fraudes em
detrimento do pagamento de tributos, não é a exigência da certidão o mecanismo
mais adequado ou eficaz para tanto. Eventual fraude será determinada pela
existência ou não de patrimônio suficiente para garantir o pagamento de dívidas
fiscais no momento da alienação do bem, conforme preceitua o art. 185 do Código
Tributário Nacional.
Atento a todas essas circunstâncias, o TJ/SP afastou a
exigência da apresentação das certidões negativas referentes a quaisquer
débitos tributários federais que não digam respeito ao ato negocial de
alienação do bem imóvel, na venda que seria feita por uma pessoa jurídica. Eis
abaixo a ementa da decisão:
"Mandado de segurança pretensão de afastar a exigência
feita pelo tabelião de notas da apresentação da certidão negativa de débitos
federais como condição para a lavratura de escritura com referência à alienação
de bem imóvel – Admissibilidade – A comprovação da regularidade fiscal não pode
ser pressuposto da efetivação do registro da transação imobiliária, sob pena de
configurar meio indireto de cobrança de tributos sentença reformada para
conceder a segurança. Recurso provido." (Apelação nº 0263444-14.2009.8.26.0000,
20 de julho de 2011)
O art. 47 da lei Federal 8.212/91 também prevê a exigência
de certidão negativa de débitos previdenciários como condição para o registro
ou arquivamento, no órgão próprio, de ato relativo a baixa ou redução de
capital de firma individual, redução de capital social, cisão total ou parcial,
transformação ou extinção de entidade ou sociedade comercial ou civil e
transferência de controle de cotas de sociedades de responsabilidade limitada.
É nitidamente outro caso de sanção política.
Para o registro dos atos societários mencionados no arti. 47
da lei Federal 8.212/91, também se exige a apresentação de certidão de
regularidade quanto ao FGTS, por força do art. 27 da lei Federal 8.036, de 11
de maio de 1990, que da mesma forma é inconstitucional.
A propósito, além da certidão negativa de débitos
previdenciários e do FGTS, em ambas as situações (alienação de bem imóvel e
registro de ato societário) o Poder Público exige a apresentação da certidão
negativa conjunta de débitos federais e inscrições na dívida ativa, emitida
pela RF do Brasil e a Procuradoria da Fazenda Nacional.
A obrigatoriedade da apresentação da certidão negativa
conjunta de débitos federais para a prática desses atos também é
inconstitucional, mas não apenas porque se caracteriza como uma sanção
política, mas também porque não existe lei prevendo tal exigência,
diferentemente do que acontece com a certidão negativa de débitos
previdenciários e do FGTS. Essa diferença é relevante, pois nos casos em que o
ato que o contribuinte pretende praticar esbarra apenas na exigência da
certidão negativa conjunta, os Tribunais são mais flexíveis.
Usando como exemplo o TRF da 3ª Região, a quem compete
julgar os processos de São Paulo, os contribuintes não costumam ter sucesso
quando pedem a dispensa da apresentação da certidão negativa de débitos
previdenciários para o registro de ato societário na Junta Comercial, a
despeito do entendimento consolidado no STF. Mas quando a discussão gira em
torno da certidão negativa conjunta, o êxito na dispensa se torna possível. A
corroborar essa firmação, eis uma decisão recente a esse respeito:
"DIREITO CIVIL. ALTERAÇÃO CONTRATUAL. REGISTRO NA JUNTA
COMERCIAL. LEI 8.934/94. CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITOS PERANTE O INSS E FGTS
(CEF). LEGALIDADE. LEIS 8.212/91 E 8.036/90. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO NEGATIVA
PERANTE A RECEITA FEDERAL DO BRASIL E PROCURADORIA DA FAZENDA NACIONAL NÃO
PREVISTA EM LEI. IMPOSSIBILIDADE. O art. 37 da lei 8.934/94, que trata do
Registro Público de Empresas Mercantis e atividades afins, dispõe expressamente
que não serão exigidos quaisquer outros documentos como condição para o
arquivamento de atos de comércio, além daqueles enumerados no próprio
dispositivo legal. O arquivamento de alteração contratual perante a Junta
Comercial prescinde da apresentação de certidão negativa de tributos federais e
dívida ativa, ante a inexistência de previsão legal específica. Quanto às
dívidas frente ao INSS, se aplica o quanto determina o art. 47, I,
"d", da lei 8.212/91, que exige CND, no registro ou arquivamento, no
órgão próprio, de ato relativo a baixa ou redução de capital de firma
individual, redução de capital social, cisão total ou parcial, transformação ou
extinção de entidade ou sociedade comercial ou civil e transferência de
controle de cotas de sociedades de responsabilidade limitada. Tratando-se de
hipótese prevista no dispositivo legal mencionado, não há como eximir a empresa
da apresentação da certidão negativa de débitos relativa ao INSS. O mesmo
raciocínio se aplica às dívidas atinentes ao FGTS, pois a prova de inexistência
de tais débitos está prevista no artigo 27 da lei nº 8.036/90. Apelação
parcialmente provida." (TRF 3ª Região, TERCEIRA TURMA, AMS
0028266-35.2005.4.03.6100, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL MÁRCIO MORAES, julgado em
17/05/2012, e-DJF3 Judicial 1 DATA:25/05/2012)
Ou seja, na dúvida entre regularizar os débitos
previdenciários, ou os débitos de FGTS, e os demais débitos federais, sugere-se
que se resolvam os primeiros, pois é menos complicado conseguir no judiciário
afastar a exigência da apresentação da certidão negativa conjunta de débitos
federais para a prática de atos como o registro de ato societário ou a venda de
bem imóvel.
Voltando à questão da comprovação da regularidade dos
débitos previdenciários, outra prática ilegal do Poder Público (pois não existe
lei que respalde a prática) é a exigência de certidão com finalidade específica
para o ato¹. Em abono dessa tese, o TRF da 3ª região já decidiu ser ilegal a
exigência de certidão previdenciária com finalidade específica:
"MANDADO DE SEGURANÇA. ARQUIVAMENTO DE ALTERAÇÃO
SOCIETÁRIA NA JUNTA COMERCIAL. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO CONCLUSIVA DA
AUTORIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO DO REGISTRO. CERTIDÃO DE
REGULARIDADE FISCAL. ART. 47, § 4°, DA LEI 8.212/91. FINALIDADE ESPECÍFICA.
ILEGALIDADE.
1. De fato não houve manifestação da autoridade impetrada
quanto ao deferimento ou indeferimento do pedido de arquivamento dos atos
constitutivos pela JUCESP.
2. Ainda que seja afastada a exigência feita pela autoridade
administrativa, podem existir outras questões que não foram apreciadas, dado
que a decisão não foi conclusiva quanto ao pedido.
3. A única hipótese em que deve constar expressamente na
certidão a finalidade do ato para o qual ela será expedida é aquela prevista no
inc. II do art. 47 da lei 8.212/91, que diz respeito à certidão exigida
"do proprietário, pessoa física ou jurídica, de obra de construção civil,
quando de sua averbação no registro de imóveis", segundo leciona o seu §
4º.
4. As normas regulamentares não podem desbordar os limites
da lei, a fim de exigir que conste finalidade específica de baixa na certidão
negativa, situação não contemplada pelo art. 47 da lei 8.212/91.
5. Apelação e remessa oficial, tida por interposta, a que se
dá parcial provimento.” (TRF 3ª Região, QUARTA TURMA, AMS
0027198-45.2008.4.03.6100, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL MARLI FERREIRA, julgado
em 17/05/2012, e-DJF3 Judicial 1 DATA:24/05/2012)
Enfim, como se pode notar, não é legítimo condicionar a
prática de qualquer ato ou negócio lícito à apresentação de certidão negativa
de débitos.
__________
Referência
¹De fato, a Receita Federal emite diferentes certidões
negativa de débitos previdenciários para diversas finalidades (averbação de
imóveis, baixa na empresa, registro de alterações contratuais e outras
finalidades), e a liberação da emissão de uma não significa necessariamente a
liberação da emissão das outras.
__________
* Vinícius de Barros é advogado do escritório Teixeira
Fortes Advogados Associados
Fonte: Migalhas
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