O ajuste fiscal em andamento consagra graves violações à
ordem jurídica nacional, que não são de hoje, é verdade, mas chegam a dimensões
compatíveis com o nível atual de desmandos públicos. Quebra da moralidade, da
legalidade, da separação de poderes. Erros do passado não justificam a
insistência neles no presente.
Aumentam-se tributos e restringem-se investimentos em
educação, saúde, segurança, moradia, assistência social; como se um povo
inculto, doente, tolhido e desamparado pudesse sobreviver à requisição
confiscatória.
Compram-se consciências ao arrepio do artigo 37 da
Constituição. Os contingenciamentos preventivos, e por decreto, são violação
abusiva do direito orçamentário — ademais com leis orçamentárias votadas após o
início do exercício, sancionadas pelos atuais governantes, alguns reeleitos,
quando sobejamente conhecida a raiz de irresponsabilidade da crise fiscal em
curso. E quando essas leis admitem, prévia e generosamente, bloqueios de
empenhos, adequações de rubricas (artigo 4º, inciso I, alíena "a", da
LOA-2015), etc., pelo Executivo — encarregado de cumprir as leis e não
autorizado a mudá-las — porque o Legislativo demite-se da prerrogativa
inalienável de legislar, então dá-se violação do princípio da separação dos
poderes da República, portanto quebra da ordem constitucional com insuportável
concentração de poder sem controle.
É disso que se trata. De poder. Dinheiro é poder. O Direito
Financeiro normatiza o exercício do poder político por uma de suas facetas mais
emblemáticas, o poder financeiro, muitas vezes guardado como coisa
envergonhada, indigna de reconhecimento, quiçá menor diante de outros valores
humanos e citadinos...
Desnecessário lembrar que a Magna Charta britânica traduzia
a tensão em torno do poder financeiro ao estabelecer o controle do Rei nessa
matéria (no taxation without representation) e, mais, que em qualquer caso as
requisições de subsídios seriam sempre razoáveis (artigo 12). Todos esses valores dependem de concreção no
plano da realidade material que requer recursos financeiros para sua
satisfação, como é, na contemporaneidade, o caso da garantia da vida com
dignidade, saúde e educação, segurança pública, liberdade de trabalho,
propriedade privada.
Como qualquer indivíduo ou empreendimento o Estado precisa
ter receitas, gerir e despender recursos materiais (no caso, dinheiro dos
cidadãos) na realização de um fim (no caso, a promoção do bem-estar daqueles
cidadãos), o Estado precisa estar organizado para ter efetivamente controlado o
exercício desse poder financeiro.
Quando na Constituição o Povo decide ter um Estado unitário
ou federal, centralizado ou descentralizado, para melhor atender as necessidades
sociais, fá-lo por uma razão financeira — as razões históricas e políticas se
confundem com aquela. Nenhum povo quer ser mal educado, pobre, inseguro,
insolvente, dominado por potências estrangeiras, infeliz; e o sucesso pessoal
ou coletivo depende de decisões de fundo econômico-financeiro, que levem a
resultados eficazes, e da estruturação e da contenção do poder
político-financeiro de gestão da coisa pública, que é o tesouro do povo.
Malfeitos, superfaturamentos, corrupção e aparelhamento
político são crimes de lesa pátria que devem ser impedidos por controle prévio,
pois causam prejuízo de difícil dimensionamento e reparação.
O primeiro instrumento desse controle é o orçamento (artigo
165 da Constituição). Equilibrado e responsável (parágrafos 6º, 7º e 8º do
artigo 165 da Constituição; artigo 1º e parágrafo 1º da Lei de Responsabilidade
Fiscal-LRF). Legal (artigo 165 da CF) e legítimo (parágrafo 3º do artigo 166 e
artigos 37 e 70 da CF). Universal e transparente (parágrafos 5º e 6º do artigo
165 da CF; e artigo 1º, parágrafos 1º da LRF).
Essa principiologia parece não valer no Brasil, malgrado a
sua positivação. Em última instância cabe ao Judiciário, provocado, remediar
tal patologia epistemológica. Questões de tal magnitude chegarão sempre mais ao
Supremo Tribunal Federal.
Se todo o arcabouço jurídico se esfacela por quebra da
separação de poderes (confecção de orçamento ficção, em que os prazos de
votação são rompidos impunemente, as rubricas legais não são à vera e podem ser
manipuladas pela Administração a elas vinculada e por elas controláveis, a
previsão da receita é inflada para atender irresponsavelmente a despesas
barganhadas em votação da baixa política; gastos secretos são tolerados), então
é chegada a hora de os Tribunais fazerem prevalecer a Lei Suprema da nação
nessa matéria tão sensível. É de se reconhecida a ilegitimidade da permissão
legal de gasto público sem orçamento em vigor (artigo 53 da LDA-2015), da
prévia autorização legislativa para a manipulação das rubricas orçamentárias
pelo Executivo, da determinação legal à Administração para proceder a
adequações de rubricas levando a contingenciamentos imediatos à vigência da lei
orçamentária (artigo 51 da LDA-2015), porque editar ato administrativo de
programação de desembolsos não pode ser a senha da carta branca para alterar o
conteúdo do orçamento, que é lei. No mínimo, é caso de interpretação conforme
aos princípios da legalidade, da moralidade e da separação de poderes. O
parágrafo 3º do artigo 165 determina que o Executivo publique relatório
bimestral resumido da execução orçamentária exatamente para exigir disciplina
gerencial, reverência ao Legislativo e obviar contingenciamentos prévios, de
que a LRF (artigo 9º) só cogita “se verificado, ao final de um bimestre, que a
realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado
(...)”.
São caminhos que se apresentam ao cumprimento do preceito
constitucional que considera o planejamento “determinante para o setor público”
(artigo 174 da Constituição), fulminando-se priorizações imorais e resultados
ineficientes que desafiam o controle de legitimidade e economicidade das contas
públicas (artigos 37 e 70 da CF). O STF, especialmente após o julgamento da STA
175 e outras, e os Tribunais em geral (conforme no STJ o REsp 1.389.952) já têm
intervindo nessa área ao examinar contenciosos individuais.
É preciso mesmo conter, pelo Direito Financeiro, o poder mal
exercido pelos governantes. Assim abrir-se-á um caminho novo, como nas
democracias consolidadas, deixando-se de padecer de ajustes fiscais que se
resumem a ilegítimo arrocho sobre uma população trabalhadora doente, mal
educada, submetida a carga tributária confiscatória por um Estado que não provê
aos direitos fundamentais em favor do desenvolvimento e da felicidade
prometidos pela ordem constitucional.
José Marcos Domingues Professor titular de Direito
Financeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor adjunto da
Universidade Católica de Petrópolis.
Fonte: Conjur
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