O crédito tributário não nasce do éter. Escuda-se em fatos,
que, em ocorrendo no mundo real, darão ensejo a relações jurídicas. No caso dos
tributos, importa sobremaneira a fase de lançamento, notadamente para os fins
de oportunizar o direito do contribuinte à ampla defesa. Note-se que o Estado é
o único credor que, por ato próprio, constitui um terceiro em
estado-de-obrigação. Tal prerrogativa deve ser exercitada com a máxima
responsabilidade. Exigir responsabilidade parelha ao grau de poder que detém o
Estado-credor, agora, também servirá para mitigar um enorme problema que assola
a nação: o volume de processos em tramitação!
Recentemente o Conselho Nacional de Justiça realizou
audiência pública para colher manifestações de órgãos públicos, autoridades,
entidades da sociedade civil e especialistas com experiência que pudessem
contribuir com esclarecimentos sobre diversos temas capazes de agregar
eficiência ao 1º Grau de Jurisdição ou ao aperfeiçoamento legislativo voltado
ao Poder Judiciário. Houve dois blocos temáticos na convocatória. Num deles
(Bloco II) se encontrava o subtema específico da desjudicialização das
execuções fiscais. Naquela ocasião diversas exposições demonstraram o caos nos
processos de execução fiscal (em especial nas municipais). Um ponto
estarrecedor foi exposto, ou melhor, foi trazido ao debate: o prazo médio de
citação em uma execução fiscal é de aproximadamente 1540 dias! Estudo técnico
do IPEA assim esclarece:
“percebe-se que o cumprimento da etapa de citação constitui
um imenso gargalo inicial. Apenas 3,6% dos executados apresentam-se
voluntariamente ao juízo. Em 56,8% dos processos ocorre pelo menos uma
tentativa inexitosa de citação, e em 36,3% dos casos não há qualquer citação
válida.”[1]
Boa parte da morosidade decorre da insuficiência de dados
cadastrais quanto ao contribuinte.
Até recentemente o Poder Judiciário tem encarado o ato de
lançamento dos tributos municipais de forma extremamente benevolente. Aquilo
que, em regra, deveria conduzir à nulidade de um lançamento, tem, até agora,
sido visto com complacência pela jurisprudência, quando se refere aos tributos
locais.
Como é praxe em Direito Tributário o contribuinte deve ser
notificado pessoalmente do ato de lançamento. É o que decorre do artigo 145 do
CTN. No tocante ao IPTU, o Superior Tribunal de Justiça em 2009 editou a Súmula
397: “O contribuinte do IPTU é notificado do lançamento pelo envio do carnê ao
seu endereço.”
A partir de então, sedimentou-se que nas alegações de
nulidade de lançamento por ausência de notificação caberia ao contribuinte “comprovar
que não recebeu” a notificação. Vejamos apenas um julgado que bem reflete a
jurisprudência da corte:
[...] NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO DO TRIBUTO. ÔNUS DO
CONTRIBUINTE PROVAR O NÃO RECEBIMENTO DA NOTIFICAÇÃO. AGRAVO NÃO PROVIDO.
[...]
2. "A remessa, ao endereço do contribuinte, do carnê de
pagamento do IPTU é ato suficiente para a notificação do lançamento tributário
(REsp. 1.111.124/PR, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASKI, DJe 18.06.2009), sendo
ônus do contribuinte a prova de que não recebeu" (AgRg no AREsp
123.086/MG, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Primeira Turma, DJe 17/4/13).
3. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 405.827/PR, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES
LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/02/2014, DJe 18/02/2014)
A adoção literal dessa perspectiva do STJ leva o
contribuinte ao dever de prova de fato negativo, incidindo em verdadeira prova
diabólica.
É preciso ler com cautela a posição jurisprudencial do
Superior Tribunal de Justiça no tocante ao lançamento do Imposto Predial e
Territorial Urbano.
Inicialmente, deve o contribuinte ocupar-se de identificar
aquilo que é, até mesmo, deveras comum nos municípios brasileiros: a ausência
de comprovação do próprio envio dos carnês.
Note-se que a hipótese de defesa não é sequer nova, e já
acabou chegado ao STJ, onde encontrou o impeditivo da Súmula 7 (dilação
probatória). Vejamos:
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. IPTU. LANÇAMENTO DO CRÉDITO
TRIBUTÁRIO. NOTIFICAÇÃO. EDITAL. EXCEPCIONALIDADE. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA
387/STJ. VERIFICAÇÃO DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.
[...]
2. Não é possível, no caso, a aplicação do entendimento
exposto na Súmula 397 do STJ (O contribuinte do IPTU é notificado do lançamento
pelo envio do carnê ao seu endereço), porquanto estabelecido na instância a quo
que não há prova da remessa do carnê. Nessas circunstâncias, a verificação dos
aspectos fático-probatórios da causa esbarra no óbice da Súmula 7/STJ.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no
REsp 1233778/MG, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA,
julgado em 23/08/2011, DJe 30/08/2011)
Portanto, ainda que a jurisprudência do STJ admita que que
baste a prova da postagem — sendo desnecessária a prova do efetivo recebimento
pelo contribuinte — temos, todavia, que aquele tribunal não imuniza de
investigação a própria questão do “envio” ou “postagem”. Mesmo que se impute ao
contribuinte tal prova, pelo menos há condições de ser impugnada a questão de
ausência de notificação por via indireta.
Por outro lado cabe aguardar que o Poder Judiciário exija
maior responsabilidade do credor tributário municipal, pois a mazela dos
lançamentos fiscais tem, invariavelmente conduzido para além da violação do
direito de defesa do contribuinte. Tem gerado volumes e mais volumes de
execuções fiscais municipais fadadas a não terem fim, tomando espaço e tempo
dos tribunais de Justiça dos estados. Tempo este que poderia, e deveria, ser
destinado à jurisdição em favor da população.
[1]http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/nota_tecnica/111230_notatecnicadiest1.pdf
Luiz Henrique Antunes Alochio é doutor em Direito da Cidade
e professor de Direito Urbanístico na UVV-ES
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1º de abril de 2014
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