sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

ATUALIDADES Aspectos tributários relevantes para as empresas em recuperação judicial

A recuperação judicial teve sua origem nos Estados Unidos, em um primeiro momento com regras específicas para as companhias ferroviárias, sendo o seu alcance estendido a outros setores da economia ao final do século XIX. Com a crise de 1929, o instituto ganhou maior relevância, tendo sido criadas leis específicas sistematizadas por um diploma denominado “Chadler Act” (1938), consolidado através do “Bankruptcy Code”, em meados da década de 90, que atualmente regula a recuperação judicial em seu Chapter 11.


A partir da segunda metade do século XX, outros países passaram a prever, em seus respectivos ordenamentos, o instituto da recuperação judicial, como Reino Unido, com o “The System of Administration”; a França, com o “Rescue Procedure”; a Alemanha, com o “Insolvency Proceedings”; e o “The Extraordinary Administration for Large Insolvent Companies”, na Itália.

Um dos atributos da lei americana, seguida pelas suas similares em outros ordenamentos jurídicos, é o de exercer um regime de atração das diversas matérias afeitas a uma empresa, qualquer que seja a sua natureza, até mesmo as tributárias, para que assim encontrem disciplina exclusiva no juízo competente da recuperação judicial. Com isso, as empresas têm a certeza de que as suas distintas questões serão avaliadas por um único juízo, sob o enfoque primordial da sua recuperação, que, nessa condição, estará melhor habilitado a compreender os efeitos e consequências da integralidade de suas decisões para todo o conjunto de ativos e de obrigações das empresas sob a sua gestão judicial.

No Brasil, a recuperação judicial entrou em vigor com a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, chamada de “A Nova Lei de Falências”, em substituição ao Decreto-Lei nº 7.661/1945.
Nos termos do artigo 47 da referida Lei, “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação da crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Diferentemente da prática internacional, e de forma incoerente ao que se pressupõe com a adoção de um regime dessa natureza, entendem as autoridades fiscais brasileiras, com base no que dispõem os artigos 187, do Código Tributário Nacional e 6º, parágrafo 7º, da Lei nº 11.101/2005, que os tributos supostamente estariam excluídos do regime de recuperação judicial. Assim dispõem referidos artigos, respectivamente:

“Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.

Parágrafo único. O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem:

I – União;

II – Estados, Distrito Federal e Territórios, conjuntamente e pró rata;

III – Municípios, conjuntamente e pró rata.”

“Art. 6º (…) 7º. As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica.”

Ou seja: todos os credores deverão sujeitar-se ao regime de recuperação judicial; as autoridades fiscais, não. Todas as dívidas da empresa que requer a recuperação judicial ficarão suspensas; mas não os créditos tributários.

O que surpreende é que as autoridades tributárias parecem desconsiderar que a situação de endividamento fiscal de uma empresa, a depender de sua atividade, pode contemplar tributos dos mais diversos, em fases distintas de cobrança. Podem, por exemplo, dispor sobre tributos simplesmente inadimplidos, sendo cobrados administrativa ou judicialmente, ou mesmo dívidas fiscais parceladas ou protestadas, situações essas que envolvem consequências e efeitos, por sua vez regulados por diferentes normas e por um, dois ou até os três entes competentes da Federação.

Diante disso, a exemplo da prática norte americana, é evidente que qualquer solução para uma empresa em recuperação judicial deve necessariamente envolver uma proposta ampla, que venha a contemplar todos os aspectos de sua atividade empresarial, contexto em que não se justifica que o endividamento e situação fiscal de uma empresa seja excluído do alcance do juízo único.

Não à toa que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem concedendo às empresas em recuperação judicial o direito de, ao menos, ter a prática de atos de constrição e de alienação de seus bens submetidos ao juízo universal da recuperação, sob a justificativa de que o patrimônio da companhia em recuperação judicial deve ser gerido em conformidade com o plano de soerguimento em andamento:

“AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL. EDIÇÃO DA LEI N. 13.043, DE 13.11.2014. PARCELAMENTO DE CRÉDITOS DE EMPRESA EM RECUPERAÇÃO. JURISPRUDÊNCIA MANTIDA.
1. O juízo onde se processa a recuperação judicial é o competente para julgar as causas em que estejam envolvidos interesses e bens da empresa recuperanda.
2. O deferimento da recuperação judicial não suspende a execução fiscal, mas os atos de constrição ou de alienação devem-se submeter ao juízo universal. Jurisprudência.
3. A Lei n. 11.101/2005 visa à preservação da empresa, à função social e ao estímulo à atividade econômica, a teor de seu art. 47.
4. No caso concreto, a edição da Lei n. 13.043/2014 – que acrescentou o art. 10-A à Lei n. 10.522/2002 e disciplinou o parcelamento de débitos de empresas em recuperação judicial – não descaracteriza o conflito de competência.
5. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(AgRg no Conflito de Competência nº 136.130/SP – Segunda Seção – Relator: Ministro Raul Araújo – Data: 22/06/2015)

Importante ressaltar que essa possibilidade, todavia, por não representar o entendimento pacífico também da Primeira Seção do referido Tribunal Superior, mas apenas da Segunda Seção, acabou por suscitar o tema 987, que levará o STJ, através de sua Corte Especial, a uniformizar a jurisprudência a este respeito, estando, por conseguinte, todos os processos que discutem essa temática atualmente suspensos.

Admitir que a competência do Juízo da recuperação judicial é limitada, não alcançando as repercussões tributárias, que, como se sabe, no Brasil são determinantes para a continuidade de uma empresa, é prover às empresas em recuperação judicial uma disciplina inadequada, com a aplicação de um regime jurídico deficiente, incapaz de atender às suas necessidades e em observância aos princípios que regem o próprio instituto.

Uma outra questão tributária que merece atenção especial, quando uma empresa passa a sujeitar-se à insuficiente regulação fiscal de empresas nessa circunstância, diz respeito à exigência de apresentação de certidão de regularidade fiscal para a concessão da recuperação judicial, segundo preceituam os artigos 57, da Lei nº 11.101/2005 e 191-A do CTN, respectivamente, a saber:

“Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.”
“Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei.”
Com efeito, a necessidade de apresentação de certidão de regularidade fiscal para a concessão da recuperação judicial, nos termos do que exige o artigo 57, da Lei nº 11.101/2005, constitui fator igualmente importante no contexto de uma recuperação. Isto porque, apesar desta exigência expressa na norma, ainda vige o posicionamento do STJ favorável às empresas em recuperação, no sentido de dispensá-las da apresentação da referida certidão, sob o fundamento de que, na ausência de uma lei concessiva de um parcelamento especial para as empresas em recuperação judicial, estas não podem ser submetidas a qualquer restrição ou exigência que decorra da própria inércia do Poder Legislativo.
E mesmo após a edição da referida Lei, acertadamente a orientação jurisprudencial vem se mantendo firme para reconhecer que o programa de parcelamento instituído pela Lei nº 13.043/2014, o qual autoriza o empresário ou a sociedade empresária que pleitear ou tiver deferido o processamento da recuperação judicial, a parcelar seus débitos com a Fazenda Nacional, em 84 parcelas mensais e consecutivas, calculadas observando percentuais mínimos aplicados sobre o valor da dívida consolidada, não atendeu às necessidades impostas pelas circunstancias especiais das empresas em recuperação judicial.

Ocorre, todavia, que, em recente julgamento, e após amplo esforço de convencimento por parte da Fazenda Pública, o STJ sinalizou que poderia revisitar o posicionamento anterior, para afirmar que o ambiente normativo atual, com o advento da Lei 13.043/2014, propicia um programa de parcelamento especial que contribui para o equacionamento das dívidas fiscais de uma empresa devedora em recuperação judicial e, portanto, de sua regularidade fiscal.

Se assim o for, passará a defender o STJ que o parcelamento em questão permitirá que a empresa devedora possa mostrar-se em condições de comprovar, de maneira efetiva, a sua regularidade fiscal, a partir de simples adesão ao referido parcelamento.

Esse parcelamento, no entanto, que deveria ser especial, como pressupõe o STJ, para assim atender às circunstâncias muito peculiares de uma recuperação judicial, não representa, de fato, uma alternativa que melhor se adeque ao fluxo econômico-financeiro restrito e inflexível, típico de uma empresa devedora que se submete a esse regime.

Essa conclusão parte de uma simples leitura das condições oferecidas por tal parcelamento, que, de diferente para o parcelamento considerado ordinário, a que se sujeitam todas e quaisquer empresas, apenas prevê um prazo adicional de pagamento de 24 meses em relação ao parcelamento ordinário e não prevê qualquer redução de juros e multas, por exemplo. Ou seja: o que se oferece com o parcelamento especial previsto na Lei nº 13.043/2014 está totalmente dissociado da realidade econômico-financeira das empresas em recuperação judicial.

Assim, impõe-se uma profunda reflexão sobre o tema, de forma que o STJ, ao revisitá-lo, não passe a considerar que a simples formalidade de existência de um parcelamento dito especial para as empresas em recuperação judicial, que, como se viu, de especial substancialmente nada apresenta, legitime a mudança de um posicionamento que reflete a melhor interpretação da Lei de recuperação judicial em observância aos seus princípios e objetivos, em especial, para este caso, o de preservação da empresa e estimulo à sua atividade econômica.

POR ANDRÉ GOMES DE OLIVEIRA
ANDRÉ GOMES DE OLIVEIRA – sócio sênior do Castro Barros Advogados e secretário geral da ABDF.
Fonte: Jota – 06-01-2020

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